Questão étnico-racial: desigualdades, lutas e resistência

Dirce Koga, Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil

Maria Lúcia Martinelli, Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil

Raquel Santos Sant’ana, Professora do Programa do Curso de Serviço Social da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP) – campus de Franca, SP, Brasil

Não é possível superar limites se estes nem sequer são percebidos e apreendidos como tal. Como afirma Kosik (1995), ninguém investiga para além do imediato, se não acreditar que existe algo a ser descoberto. Afinal, nós assistentes sociais vivemos nessa sociabilidade e construímos conceitos e juízos provisórios para seguir a vida como seres sociais. Como muito bem nos lembra Heller (1980), os juízos provisórios que são contestados pela razão e pela experiência, mas que se mantêm inabalados, são preconceitos, e mais: o afeto da fé os sustenta, basta acreditar, não importa que tenham sido cientificamente desconstruídos, ou se mostrado equivocados pela vivência. Nas palavras da própria autora:

a maioria dos preconceitos, embora nem todos, são produtos das classe dominantes […] Isso não é apenas consequência de suas maiores possibilidades técnicas, mas também de seus esforços ideológicos hegemônicos: a classe burguesa aspira a universalizar a sua ideologia (HELLER, 1980, p. 54).

Essa edição de Serviço Social & Sociedade vem contribuir com esse processo permanente que a profissão tem feito ao longo dos últimos 40 anos, no sentido de avançar teórica e politicamente. Afinal, o racismo é uma marca estruturante da formação sociohistórica brasileira, e remonta à face bárbara de um país que insiste em ser moderno (IANNI, 1994).  Segundo José de Souza Martins (1994), trata-se de uma “sociedade de história lenta”, ou ainda, trata-se de uma interpretação da realidade social, a partir da perspectiva de uma “sociologia de história lenta”, que

permite fazer uma leitura dos fatos e acontecimentos orientada pela necessidade de distinguir no contemporâneo a presença viva e ativa de estruturas fundamentais do passado (…) Mais do que isso, uma sociologia da história lenta permite descobrir, e integrar na interpretação, estruturas, instituições, concepções e valores enraizados em relações sociais que tinham pleno sentido no passado, e que, de certo modo, e só de certo modo, ganharam vida própria. É sua mediação que freia o processo histórico e o torna lento (MARTINS, 1994, p. 14).

Tais marcas sociohistóricas que persistem na questão étnico-racial em nosso país seguem no artigo sobre as “Persistentes desigualdades raciais e resistências negras no Brasil contemporâneo”, de Zelma Madeira e Daiane de Oliveira Gomes. Importa ressaltar, como defendem as autoras, que frente às persistentes desigualdades raciais encontram-se as resistências negras. Ou seja, a questão étnico-racial vincula-se ao próprio processo de construção desigual de nossas cidades, que reproduzem o modelo desigual e discriminatório da nossa formação societária, de que trata o artigo “Notas para o debate das relações de exploração-opressão na sociedade patriarcal-racista-capitalista”, de Milena Fernandes Barroso.

O debate sobre a questão étnico-racial dialoga diretamente com questões muito importantes para o serviço social que sustenta seu projeto profissional fundamentalmente a partir da teoria marxiana, e que tem na centralidade do trabalho o elemento fundante da sociabilidade.  Afinal, haveria uma hierarquia na determinação da realidade e, portanto, a prioridade da classe? A questão racial vem depois? Como muito bem destacam os artigos publicados nesta edição, se quisermos entender a classe trabalhadora desse país, temos que analisar a própria formação da sociedade brasileira, afinal, essa classe trabalhadora sempre teve sexo e cor. Sem o eixo classe não é possível entender a realidade brasileira, porém somente com esse complexo social tampouco a entenderemos, afinal nada mais estranho a Marx que um único determinante definindo uma realidade. Totalidade significa entender a complexidade que compõe as diversas particularidades presentes na realidade.

Cisne e Santos (2018) enfrentam esse debate e reafirmam a necessidade de identificar esses complexos sociais. A perspectiva de totalidade reclamada pelas autoras identifica o trabalho como elemento fundante da sociabilidade, mas descrevem três divisões estruturais que, associadas entre si, compõem a realidade:

Partimos da concepção marxista de que as relações sociais se fundam por meio do trabalho. O trabalho, nesta sociedade hetero-patriarcal-racista-capitalista, possui três divisões estruturais associadas entre si: a) a divisão social fundada nas relações entre as classes; b) a divisão racial, fundada nas relações sociais de raça; c) a divisão sexual, fundada nas relações de sexo. As relações sociais são perpassadas pela apropriação do trabalho de um grupo ou classe sobre outro. São essas relações sociais, mediadas por antagonismos e hierarquias, que processam a produção e a reprodução sociais, permeadas pela exploração da força de trabalho e pelas opressões a ela vinculadas (CISNE; SANTOS, 2018, p. 25).

Nesta edição, o leitor e a leitora ficarão fortalecidos para essa luta, pois, de fato, os diversos artigos, cada um com um enfoque, nos subsidiam e apoiam teórica e politicamente esse posicionamento coerente, previsto pelo projeto profissional do serviço social. Os artigos, em geral, que compõem o número 133 tratam da temática étnico-racial sob a tríade “desigualdade, luta e resistência”, e o fazem em diálogo plural com o referencial marxiano e com o projeto profissional do serviço social brasileiro.

Ainda que a ênfase dos artigos recaia sobre a questão dos negros, o periódico traz ainda o debate sobre a questão indígena. Um deles escrito, por Elizângela Cardoso de Araújo Silva, destaca o direito a terra como condição fundamental para os povos indígenas. O outro artigo sobre esta temática é de autoria de Joaquina Barata Teixeira, intitulado “Etnias amazônicas: confrontos culturais e intercorrências no campo jurídico”. Não sem motivo, esta assistente social e professora aposentada pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em sua incansável militância pela questão indígena aos 82 anos de idade, recebeu justa homenagem no XI Seminário Anual de Serviço Social, cujo texto “Joaquina Barata: Amauta do Serviço Social brasileiro”, de autoria do Prof. Marcelo Braz, encerra este número do periódico, recordando-nos a importância de saber reconhecer méritos e comemorar juntos, pois ao fazê-lo estamos dando visibilidade a trajetórias de vida densamente vividas.

Referências

CISNE, M.; SANTOS, S. M. M. Feminismo, diversidade sexual e serviço social. São Paulo: Cortez, 2018. (Biblioteca básica de serviço social, v. 8)

HELLER, A. O cotidiano e a história. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1980.

IANNI, O. A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 1994.

KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

MARTINS, J. de S. O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.

MATOS, M. C. de. Considerações sobre atribuições e competências profissionais de assistentes sociais na atualidade. Serv. Soc. Soc., n. 124, p. 678-698, 2015. ISSN:0101-6628 [viewed 26 October 2018].  DOI: 10.1590/0101-6628.046. Available from: http://ref.scielo.org/sg429k

Para ler os artigos, acesse

BARATA, J. Etnias amazônicas: confrontos culturais e intercorrências no campo jurídico. Serv. Soc. Soc., n. 133, p. 501-514, 2018. ISSN: 0101-6628 [viewed 26 October 2018].  DOI: 10.1590/0101-6628.156. Available from: http://ref.scielo.org/r8hvry

BARROSO, M. F. Notas para o debate das relações de exploração-opressão na sociedade patriarcal-racista-capitalista. Serv. Soc. Soc., n. 133, p. 446-462, 2018. ISSN:0101-6628 [viewed 26 October 2018].  DOI: 10.1590/0101-6628.153. Available from: http://ref.scielo.org/bb3mf5

MADEIRA, Z.; GOMES, D. D. de O. Persistentes desigualdades raciais e resistências negras no Brasil contemporâneo. Serv. Soc. Soc., n. 133, p. 463-479, 2018. ISSN:0101-6628 [viewed 26 October 2018].  DOI: 10.1590/0101-6628.154. Available from: http://ref.scielo.org/kzy5m9

Link externo

Serviço Social & Sociedade – SSSOC: www.scielo.br/sssoc/

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

KOGA, D., MARTINELLI, M. L. and SANT'ANA, R. S. Questão étnico-racial: desigualdades, lutas e resistência [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2018 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2018/12/21/questao-etnico-racial-desigualdades-lutas-e-resistencia/

 

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