A virada do Serviço Social brasileiro contra o conservadorismo: 40 anos depois

Raquel Raichelis, Docente e pesquisadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil

Serviço Social & Sociedade (n. 136) comemora quatro décadas do movimento de renovação crítica do Serviço Social brasileiro, que na crise da autocracia burguesa demarcou uma inflexão sem precedentes nos rumos da profissão, configurando-se o que Paulo Netto (1991) denominou de “intenção de ruptura”, sob os influxos do Movimento de Reconceituação do Serviço Social na América Latina. No mesmo passo, celebra também os 40 anos de existência ininterrupta deste importante periódico do Serviço Social brasileiro. Na conjuntura política de meados da década de 1970 presencia-se uma nova dinâmica acadêmico-profissional em diferentes âmbitos: na formação acadêmica; na produção teórica e sua difusão; na formulação de um novo projeto ético-político para o Serviço Social com a ativa participação e articulação das entidades profissionais. Estes processos foram fundamentais para a ruptura no Serviço Social brasileiro com a matriz conservadora que marcou sua gênese, animada pelo clima de liberdades democráticas que o país começa a desfrutar, notadamente entre as décadas de 1970 e 1980, que ensejou a construção do que veio a ser denominado projeto ético-político do Serviço Social brasileiro (IAMAMOTO, 1992; PAULO NETTO, 1996).

A maioria dos artigos que integram esta edição teve como base as exposições das/os autoras/es no 12º Seminário Anual de Serviço Social, promovido pela Cortez Editora e realizado no TUCA (teatro da PUC-SP) em 6 de maio de 2019, que teve como tema central as comemorações dos 40 anos do “Congresso da Virada” (setembro de 1979) e também dos 40 anos do Serviço Social & Sociedade da Cortez Editora.

Na abertura dessa edição destaca-se o texto “Cinco teses sobre a formação social brasileira” de Mauro Iasi, no qual desenvolve uma análise sobre a formação sociohistórica brasileira, com destaque para o caráter predatório das relações coloniais e escravistas que  marcaram indelevelmente o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo no Brasil. Movido pelo “pessimismo da razão e otimismo da vontade”, o autor nos brinda com uma instigante análise da dominação burguesa em nosso país, avançando para períodos mais recentes nos quais destaca o esgotamento da política de conciliação de classes e os desafios para o trabalho profissional frente à persistente crise social do tempo presente.

Na sequência, Marilda Iamamoto resgata em seu artigo “Renovação do Serviço Social no Brasil e desafios contemporâneos” o significado político do III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais realizado em São Paulo, em setembro de 1979, e o movimento no Serviço Social que deu origem à histórica “virada” contra o conservadorismo profissional, na ambiência sociopolítico das lutas contra a ditadura civil-empresarial no Brasil, que levaram à sua derrocada.  Em sua análise, ao mesmo tempo em que destaca a importância desse amplo e profundo processo de ruptura teórica e política com o lastro conservador, a autora chama atenção para o ressurgimento de um projeto conservador na profissão e na sociedade, em relação ao qual a categoria profissional precisa estar preparada para enfrentar, em um duplo movimento: aprofundando a dimensão político-pedagógica do trabalho cotidiano com as classes subalternas no âmbito das políticas sociais e, ao mesmo tempo, colaborando para fortalecer a dimensão coletiva das lutas sociais.

O terceiro artigo “Servicio Social en América Latina:desigualdad social regional, crisis de democracia y capitalismo”, de Rita Molina, atual presidente da Asociación Latinoamericana de Enseñanza e Investigación en Trabajo Social – ALAEITS, aborda a conjuntura de regressão social que caracteriza o cenário sociopolítico da América Latina, com a radicalização de estratégias neoliberais que visam enfraquecer as estruturas democráticas e os sistemas de proteção social na região. A autora destaca os impactos devastadores dos indicadores sociais em todas as dimensões da vida social, principalmente na ampliação da pobreza, da fome e do desemprego na região. Ao mesmo tempo realiza uma análise crítica das tendências privatistas da formação acadêmica no Serviço Social em toda a América Latina, e o ressurgimento de traços pragmatistas e conservadores no trabalho profissional, que ameaçam a materialização do projeto ético-político em nível de cada nação e no continente como um todo. Nesse contexto adverte que “apenas um processo de construção coletiva poderá viabilizar e dinamizar concepções e práticas verdadeiramente compartilhadas nos processos de formação e no exercício profissional a favor da promoção, defesa e exigibilidade dos direitos humanos”.

Os demais artigos que completam esse número especial contribuem para adensar as análises sobre o movimento de renovação do Serviço Social brasileiro e a contribuição do Serviço Social & Sociedade, traçando um rico painel de questões que caracterizam as tendências desse processo global que envolveu a profissão em seu esforço de validação teórica e construção de um projeto profissional coletivo crítico e comprometido com as classes trabalhadoras.

Contribui para isso o artigo “O enfrentamento conservador da ‘questão social’ e desafios para o Serviço Social no Brasil” de Josiane Santos, atual presidente do CFESS, que aborda em seu texto o trato conservador da “questão social” na atual conjuntura política, conclamando a categoria profissional para a importância da resistência política nas ruas, no trabalho, nas atividades coletivas.

Importante mencionar ainda dois artigos que têm como foco o periódico Serviço Social & Sociedade da Cortez Editora, destacando sua importância para o movimento renovador no Serviço Social. No texto intitulado “Revista Serviço Social & Sociedade: 40 anos contribuindo para o pensamento crítico do Serviço Social brasileiro”, Raquel Raichelis et al. realizam um balanço dos 40 anos ininterruptos deste periódico e sua contribuição à difusão do pensamento crítico da profissão. E Esther Lemos, atual presidente da ABEPSS, apresenta em seu artigo “40 anos da virada e a contribuição da Serviço Social e Sociedade na disseminação da produção intelectual”, o papel dessa entidade para a formação profissional e para a pesquisa, bem como a contribuição da Serviço Social & Sociedade na disseminação da produção intelectual de destacadas/os pesquisadoras/es da área e das ciências sociais em geral, evidenciando a potência política da produção do conhecimento como arma da crítica e da resistência ao pensamento conservador.

Fecham esse número duas contribuições relevantes que apresentam resultados de pesquisa sobre o Movimento de Reconceituação do Serviço Social. O artigo “O projeto da Escola de Serviço Social de Belo Horizonte – 1960-1975: uma reconstrução histórica”, de autoria de Rosangela Batistoni, realiza uma reconstrução histórica do emblemático projeto da Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais que, afinado com a reconceituação latino-americana, dá origem ao conhecido Método BH, experiência precursora da aproximação do Serviço Social à tradição marxista, ainda sob as condições políticas adversas que marcaram a vigência da ditadura no Brasil. E, na mesma trama do Movimento de Reconceituação e da renovação profissional, o texto de Isaura Aquino “A participação do CBCISS no Movimento de Reconceituação e o Congresso da Virada”, tem como objeto de análise o CBCISS, importante centro de difusão do pensamento desenvolvimentista na segunda metade dos anos de 1960, cujas maiores expressões foram as edições dos famosos seminários de Araxá e Teresópolis, no contexto denominado por Paulo Netto (1991) de “modernização conservadora”.

Os/as leitores dessa edição do Serviço Social & Sociedade certamente serão recompensados pela excelente contribuição que oferece à história e à memória de um período dos mais significativos, não apenas para o Serviço Social, mas também para a história recente da sociedade brasileira, fundamental para decifrar o presente e projetar o futuro da profissão em nosso país.

Referências

IAMAMOTO, M. V. Renovação e conservadorismo no Serviço Social – ensaios críticos. São Paulo: Cortez, 1992.

PAULO NETTO, J. P. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 1991.

PAULO NETTO, J. P. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à crise contemporânea. In: CFESS/ABEPSS; CEAD/UNB (Org.). Crise contemporânea, questão social e Serviço Social. Capacitação em Serviço Social e política social. Brasília: CEAD/UnB, 1999.

Para ler os artigos, acesse

Serv. Soc. Soc.  no.136 São Paulo set./dez. 2019

Link externo

Serviço Social & Sociedade – SSSOC: www.scielo.br/sssoc

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

RAICHELIS, R. A virada do Serviço Social brasileiro contra o conservadorismo: 40 anos depois [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2019 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2019/10/24/a-virada-do-servico-social-brasileiro-contra-o-conservadorismo-40-anos-depois/

 

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