Que as falas silenciadas explodam! Educação e populações negras analisadas em perspectiva histórica

Adlene Silva Arantes, Professora Livre docente na Universidade de Pernambuco (UPE), Nazaré da Mata, PE, Brasil.

José Gondra, Professor Titular de História da Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Pesquisador do CNPq e da FAPERJ, no Programa Cientista do Nosso Estado, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Surya Aaronovich Pombo de Barros, Professora na Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil.

Logomarca do periódico: Revista Brasileira de História da EducaçãoÉ com muito orgulho que apresentamos esse dossiê! A importância de articular relações raciais e educação está presente em leis, na formação docente e em debates públicos, uma vez que é (ou deveria ser) unânime a urgência do combate ao racismo. Nesse sentido, compreender como a escola, estudantes e docentes (brancos/as, negros/as e de outras cores) foram sendo produzidos ao longo da história brasileira é fundamental para o desenvolvimento e sustentação de práticas antirracistas. Com o objetivo de trazer o que há de mais atual na pesquisa sobre história da educação de populações negras, os textos desse volume abordam diferentes períodos históricos, especialmente séculos XIX e XX; diversas regiões brasileiras (e um texto é sobre Moçambique) e uma grande variedade de aprofundamentos: questões de gênero, existência de intelectuais negros(as), diferentes modalidades de ensino (primeiras letras, aulas noturnas, ensino superior, ensino de artes e ofícios), entre outros, são analisadas na articulação com questões relativas às pessoas negras.

A diversidade de análises, metodologias e de fundamentos teóricos, assim como a de sujeitos pesquisando e sendo pesquisados/as transparece nesse material. Os artigos foram escritos por 12 autoras e 5 autores, oriundas/os de diferentes regiões brasileiras, brancos/as, negros/as e miscigenados/as. Além da diversidade regional, de gênero e de raça, o material tem uma característica muito interessante: foi produzido por docentes universitários e por estudantes de pós-graduação que atuam na Bahia, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Maputo/Moçambique e Porto/Portugal. Entre eles e elas, nomes já consagrados e jovens pesquisadoras/es que iniciam no campo da História da Educação mostram uma miríade de possibilidades para entendermos e problematizarmos as relações entre educação, escola e formação das populações negras.

No artigo Ler, escrever e contar entre as mulheres escravizadas: uma história a ser escrita, Eliane Peres objetiva identificar o domínio da leitura e da escrita entre mulheres escravizadas e analisar as circunstâncias desse aprendizado no século XIX, a partir de pesquisa realizada em jornais disponíveis na Hemeroteca Virtual da Biblioteca Nacional, analisando diferentes regiões como Bahia, Maranhão, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

No texto “Minas Gerais é muitas”: Negros e Brancos nas escolas do Sul de Minas, no Século XIX, Marcus Vinícius Fonseca e Vanessa Souza Batista analisam o perfil racial e socioeconômico dos alunos e aspectos relativos a seus grupos familiares na primeira metade do século XIX, comparando o público das escolas da região sul-mineira com o da região central da província, destacando a importância de se levar em consideração a diversidade regional nas análises sobre a história da educação em Minas Gerais.

Em “Credores de minha estima”: pretos e pardos na instrução pública e privada, no final do século XIX e início do século XX, em Cuiabá-MT, Paulo Sérgio Dutra analisa a presença de pretos e pardos como alunos e professores na instrução pública e privada cuiabanas, entre 1857 e 1911. Ele destaca a presença negra na Diretoria da Instrução Pública, de Externatos e Inspeção de Escolas, assim como mulheres negras ocupando as escolas de Primeiras Letras públicas e privadas, o jornalismo e a direção de grêmios no período.

Em Erudição e racismo na trajetória ascendente de uma família negra do Maranhão, Mariléia dos Santos Cruz analisa a trajetória da família Nascimento Moraes, abordando as estratégias de mobilidade social usadas por essa família negra, com ênfase em um projeto de erudição desfrutado em sucessivas gerações; descreve a trajetória escolar e profissional dos mais destacados filhos do professor Nascimento Moraes e registra situações de enfrentamento de racismo, apesar da trajetória ascendente da família no Maranhão entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do XX.

Em Retratos e registros de escolas de São João de Meriti (RJ): perfil populacional e trajetórias docentes (1920-1943), Amália Dias analisa o perfil racial e populacional de estudantes e docentes de escolas públicas primárias de São João de Meriti à luz da historiografia sobre a presença de populações não-brancas na educação pública. Como resultado são apresentados os modos e cotidianos de funcionamento das escolas fotografadas, demandas por matrículas e trajetórias docentes que descortinam, entre condições de acesso e permanência, as possibilidades, os alcances e limites de experiências educativas de populações não-brancas periféricas entre 1920 e 1943.

Foto retangular horizontal. Bordado tracejado em um pano branco. Parece ser uma sala de aula. Uma linha 1/3 vermelha 2/3 azul na parte de cima, uma linha amarela na parte de baixo. Uma pessoa com cabelo no centro segurando um objeto vermelho sobre uma linha marrom (uma mesa). Na frente várias pequenas cabeças (alunos) e traços marrom (mesas).

Imagem: Fátima Pombo (2021). Arquivo Pessoal.

No texto As alunas negras da Escola Doméstica de Nossa Senhora do Amparo (1889–1910) Daniel Ferraz Chiozzini e Luciana Silva Leal tratam do processo de escolarização de meninas negras na Escola Doméstica Nossa Senhora do Amparo, que tinha como objetivo amparar e instruir órfãs, em Petrópolis, entre os anos de 1889 e 1910, defendendo que o lugar social ocupado pelas egressas da instituição foi majoritariamente subalterno, apenas reconfigurando as relações de exploração sobre as mulheres negras.

Em População Negra e Ensino Superior no início do século XX: Considerações sobre o posicionamento do jornal Progresso (1928-1930), Ana Luiza Jesus da Costa e Mariana Machado Rocha analisam as publicações do jornal Progresso, de São Paulo, entre os anos de 1928 e 1930, a fim de perceber como os intelectuais negros do início do século XX se posicionavam à respeito do ensino superior, considerando não apenas o acesso formal dos negros a esta etapa de ensino e às profissões e benefícios materiais e simbólicos aos quais ela dá acesso, mas também as maneiras informais de aquisição e manipulação da “cultura douta”.

Em Abdias Nascimento: a trajetória de um intelectual negro engajado na disseminação de saberes emancipatórios entre as décadas de 1920 e 1940, Carlos Eduardo Vieira e Fabíola Maciel Corrêa analisam a trajetória do intelectual negro, com ênfase em sua experiência no Teatro Experimental do Negro, a fim de compreender o seu processo de formação como intelectual engajado nas causas das populações negras.

Em Do sertão ao sul baiano: sociabilidade, circularidade e atuação do intelectual negro Deoclecio Silva (1889-1927), Cristiane Batista do Santos apresenta aspectos da trajetória desse intelectual baiano que professor e redator em Ilhéus na Primeira República, fez parte de rede de sociabilidade de intelectuais na primeira República, na capital e em Ilhéus, representando um grupo que coexistiu ao lado dos coronéis, ícones da elite econômica e política e, em paralelo, constituindo-se como uma elite cultural que exercia a docência como uma agência potencializadora de suas ideologias políticas.

Em Escola Noturna O Exemplo: educação e emancipação dos trabalhadores na imprensa negra do pós-abolição (Porto Alegre, Rio Grande do Sul), Melina Perussatto destaca lutas por instrução e educação presentes no projeto de escola noturna defendido pelo jornal “O Exemplo” de Porto Alegre no início do século XX. A partir das conexões com as lutas do movimento operário e da tentativa de materialização de ideias diaspóricas antirracistas, explicita articulações entre raça, classe e gênero na produção de desigualdades e na construção de lutas políticas no pós-abolição.

Em O Liceu de Artes e Ofícios do Recife e suas táticas de instrução de trabalhadores negros no período pós-emancipação, Adriana Maria Paulo da Silva e Yan Soares Santos analisam as relações articuladas entre os trabalhadores negros do mercado de edificações, consócios da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, e os poderes públicos de Pernambuco, defendendo que o liceu se voltou para a instrução de crianças negras no Recife, pugnou pela dignificação da condição de pessoas livres e trabalhadoras e pela manutenção de suas atividades coletivas.

No texto A Educação de Populações Indígenas em Moçambique: do Período Colonial ao Início da Era Pós-Independência, Nazia Anita Cardoso Bavo se debruça sobre a História da educação em Moçambique, marcada pela ação colonizadora de Portugal, desde o século XV, até a independência nacional, em 1975. Ela assinala um conjunto de práticas colonizadoras de discriminação, marginalização e imposição da língua, bem como de clivagem e criação de um fosso entre as populações nativas e os filhos dos colonizadores. A estas classes sociais estavam destinados regimes educativos diferenciados e penalizadores para os nativos, visando reproduzir e perpetuar o sistema de dominação colonial, sobretudo através da orientação para a produção de mão-de-obra.

Com essas contribuições, oferecemos um panorama atualizado dos estudos em torno da história da educação das populações negras. A Revista Brasileira de História da Educação, há quase 2 décadas, publicou um dossiê com a mesma temática. Nesse volume, de 2022, a Revista continua sendo um veículo privilegiado para que a comunidade acadêmica, docentes de diferentes níveis, ativistas e militantes, assim como qualquer pessoa interessada em conhecer melhor o Brasil, tenham acesso às pesquisas mais recentes sobre a questão racial na história da educação brasileira. Enfim, esse dossiê possibilita ver a agência negra sendo privilegiada e o racismo, em suas mais diferentes manifestações, denunciado, de modo que, como conclama Conceição Evaristo, não haja “um ponto final na história” e que as palavras da liberdade possam ser eternizadas.

Na face do velho

as rugas são letras,

palavras escritas na carne,

abecedário do viver.

 

Na face do jovem

o frescor da pele

e o brilho dos olhos

são dúvidas.

 

Nas mãos entrelaçadas

de ambos,

o velho tempo

funde-se ao novo,

e as falas silenciadas

explodem.

 

O que os livros escondem,

as palavras ditas libertam.

E não há quem ponha

um ponto final na história

Infinitas são as personagens…

Vovó Kalinda, Tia Mambene,

Primo Sendó, Ya Tapuli,

Menina Meká, Menino Kambi,

Neide do Brás, Cíntia da Lapa,

Piter do Estácio, Cris de Acari,

Mabel do Pelô, Sil de Manaíra,

E também de Santana e de Belô

e mais e mais, outras e outros…

 

Nos olhos do jovem

também o brilho de muitas histórias.

e não há quem ponha

um ponto final no rap

 

É preciso eternizar as palavras

da liberdade ainda e agora…

 

Conceição Evaristo, 2008

Referências

BRASIL. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica. Brasília: Ministério da Educação/Secad, 2004.

EVARISTO, C. Do velho ao jovem. 2008 [viewed 12 December 2022]. Available from: https://lyricstranslate.com/pt-br/conceicao-evaristo-do-velho-ao-jovem-lyrics.html

FONSECA, M.V. A arte de construir o invisível: o negro na historiografia educacional brasileira. Revista Brasileira de História da Educação [online]. 2007, vol. 13, pp. 11-50 [viewed 12 December 2022]. Available from: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/38616

FONSECA, M.V. and BARROS, S.A.P. (orgs.) A história da educação dos negros no Brasil. Niterói: EDUFF, 2016.

GONDRA, J.G. and SCHUELER, A. Educação, poder e sociedade no Império brasileiro. São Paulo: Cortez Editora, 2008.

Para ler os artigos, acesse

BAVO, N.A.C.N. and COELHO, O. A educação de populações indígenas em Moçambique: do Período Colonial ao início da Era Pós-Independência. RBHE [online]. 2022, vol. 22, e219 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e219. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/4fgM5xyywVFYdS4FjVLdj3c/

BEZERRA, A.C.D.R. Retratos e registros de escolas de São João de Meriti (RJ): perfil populacional e trajetórias docentes (1920-1943). RBHE [online]. 2022, vol. 22, e212 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e212. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/xgXSPzsSsfMG5T48ZrCxwph/

CHIOZZINI, D.F. and LEAL, L.S. As alunas negras da Escola Doméstica de Nossa Senhora do Amparo (1889-1910). RBHE [online]. 2022, vol. 22, e213 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e213. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/jtMCrkvcDZHtDFD7WmMkTjq/

CRUZ, M.S. Erudição e racismo na trajetória ascendente de uma família negra do Maranhão. RBHE [online]. 2022, vol. 22, e211 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e211. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/HRmpwFxVLBNJLmKPcg3y8YD/

DUTRA, P.S. “Credores de minha estima”: pretos e pardos na instrução pública e privada, no final do século XIX e início do século XX, em Cuiabá – MT. RBHE [online]. 2022, vol. 22, e210 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e210. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/6Twy4jGrvZBD9v7VV6btgLd/

FONSECA, M.V. and BATISTA, V.S. ‘Minas Gerais é muitas’: negros e brancos nas escolas do Sul de Minas, no século XIX. RBHE [online]. 2022, vol. 22, e209 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e209. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/dQftpWT9DNgWghmMKK7JVBN/

PERES, E. Ler, escrever e contar entre mulheres escravizadas: uma história a ser escrita. RBHE [online]. 2022, vol. 22, e208 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e208. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/dk5nGdGPRYttVTr6QNGQ98R/

PERUSSATTO, M.K. Escola noturna ‘O Exemplo’: educação e emancipação dos trabalhadores na imprensa negra do pós-abolição (Porto Alegre, Rio Grande do Sul). RBHE [online]. 2022, vol. 22, e217 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e217. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/r5bcRxKPm3TRzRKrppf9gkr/

ROCHA, M.M. and COSTA, A.L.J. População negra e ensino superior no início do século XX: considerações sobre o posicionamento do jornal Progresso (1928-1930). RBHE [online]. 2022, vol. 22, e214 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e214. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/TVwmr8N6WzRsCmyRr3h6cND/

SANTOS, C.B.S. Do sertão ao sul baiano: sociabilidade, circularidade e atuação do intelectual negro Deoclecio Silva (1889-1927). RBHE [online]. 2022, vol. 22, e216 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e216. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/FR63H3hnvWrgzd73kNNXGNy/

SANTOS, Y.S. and SILVA, A.M.P. O Liceu de Artes e Ofícios do Recife e suas táticas de instrução de trabalhadores negros no período pós-emancipação. RBHE [online]. 2022, vol. 22, e218 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e218. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/YfXpP7hqv9Wxnwy6gzzvm8f/

VIEIRA, C.E. and CORREA, F.M. Abdias Nascimento:a trajetória de um intelectual negro engajado na disseminação de saberes emancipatórios entre as décadas de 1920 e 1940. RBHE [online]. 2022, vol. 22, e215 [viewed 12 December 2022]. https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e215. Available from: https://www.scielo.br/j/rbhe/a/fzf3Fdxs9kwfy7VhH5yRMbL/

Links externos

Revista Brasileira de História da Educação – RBHE: https://www.scielo.br/rbhe/

Revista Brasileira de História da Educação – site: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/index

Para ler a edição especial, acesse: http://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e207

Sociedade Brasileira de História da Educação – Facebook: https://www.facebook.com/sbhe.sbhe.1654

Link da página institucional dos autores:

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

ARANTES, A.S., GONDRA, J. and BARROS, S.A.P. Que as falas silenciadas explodam! Educação e populações negras analisadas em perspectiva histórica [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2022 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2022/12/12/que-as-falas-silenciadas-explodam-educacao-e-populacoes-negras-analisadas-em-perspectiva-historica/

 

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