Os desafios da docência diante do modelo de ensino híbrido na universidade mercantilista

Isael de Jesus Sena, docente do curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea (PPGFSC) da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Salvador, Bahia, Brasil.

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O artigo Ensino híbrido na universidade e o lugar de enunciação do professor na formação acadêmico-profissional busca refletir sobre o ensino híbrido que vem sendo implementado sem criticidade pela universidade mercantilista. O discurso tecnológico atua como suporte discursivo, no qual os docentes se apoiam para desenvolver a formação universitária. Essa pesquisa é um recorte da tese intitulada “Os impasses do ensino superior privado brasileiro: o professor e a perversão do laço formativo” (Sena, 2020), um estudo realizado em 2020, no qual entrevistamos professores que exerciam a docência em instituições de ensino superior privadas de caráter mercantil.

Entre um conjunto de desafios narrados pelos professores, estes se queixavam, sobretudo, acerca da incidência brutal das novas tecnologias da comunicação e informação (NTIC), que vêm, de modo significativo, alterando as formas de ensino e transmissão e, consequentemente, substituindo as relações de transferências entre professor e aluno.

A motivação pelo estudo ocorreu em decorrência de nosso interesse em refletir sobre a privatização generalizada da educação ao modo brasileiro, promovida em nome da luta contra as desigualdades sociais. Entrevistamos 42 docentes de instituições de ensino superior privadas, em uma cidade da região Nordeste, de diferentes áreas: saúde, ciências humanas, ciências sociais, ciências biológicas e engenharias. 

Neste artigo, especificamente, abordamos um estudo de caso de uma professora que atuava em um curso da área de saúde. Ela nos mostrou, em forma de síntese, por alguns enunciados, sua experiência diante da avalanche da tecnologia e das formas de submissão ao modus operandi, uma fala de sua anulação: “Ah, eu sou índia, eu não sou cacique, né? Então, a gente é empurrado goela abaixo. Ah! O cacique manda e o índio tem que cumprir. E é imposição mesmo”, conclui a professora Moara. 

Podemos destacar, diante da oposição índia versus cacique, que há o tom de obediência, insinuada pela professora e determinada por um saber programado, que estrutura a discursividade da tecnologia. Nesse sentido, o “discurso da tecnologia” rechaça a possibilidade de o professor poder se enunciar, pois ele está objetificado. 

Em tempos de sedução do discurso da tecnologia na educação – da escola à universidade – prometendo não criar fronteiras nem obstáculos, pode-se reconhecer, nesse ato desbravador, a incidência do objeto sobre o sujeito, produzindo um completo pacto de satisfação, pois a resposta à demanda assemelha-se a um “guichê”. 

Além disso, nos dias de hoje, endossada pela força discursiva do paradigma cognitivista, o qual difunde que a aprendizagem se reduz apenas a um mecanismo de operação de processamento de dados (input e output), submetida à percepção e à informação, tal ato se processa como uma máquina. 

Ilustração de mãos manipulando um tablet, onde a tela e ícones flutuantes ao redor representam elementos educacionais, como uma lousa, globo terrestre, modelo atômico de Bohr, livros e calculadoras, sobre um fundo laranja.

Imagem: Anna Frajtova (iStock).

Nesse sentido, as promessas anunciadas pela dita revolução tecnológica, guiadas pelas premissas de uma orientação cognitivista, transformaram as formas de ensino e aprendizagem além da dinâmica do trabalho docente nas instituições educativas. 

A universidade hodierna, comprometida com a mercantilização da formação, está implicada na transmissão de um conhecimento que prescinde ou denega os lugares de enunciação do professor. Nesse contexto, o mestre, por sua vez, passa a ocupar posições diversas, como destaca Segenreich (2015): tornam-se “conteudistas”, “aulistas”, “tarefeiros”, além de também desempenharem o papel de instructional designers

Alguns desses profissionais são convocados a integrar a equipe responsável pela produção e distribuição, enquanto outros docentes se tornam tutores, pois acompanham o aluno tanto em plataforma virtual como presencialmente. O que se pode notar é que o acompanhamento do professor torna-se, quase sempre, um trabalho burocrático, requerendo-lhe obediência ao aparato tecnológico.

Reconhecemos que a oferta de uma formação sem o bastão da qualidade da experiência não pode suscitar nenhuma demanda ou desejo dos alunos. A ambição da lógica do mercado, segundo “o apetite do ganho”, aplica-se indiscriminadamente à educação superior, sob o ímpeto da virtualização determinado pelos significantes mestres que assujeitam os docentes.

O ensino híbrido combina elementos presenciais e virtuais, proporcionando uma experiência mais dinâmica, enriquecedora e adaptativa para os alunos, que serão capazes de desenvolver habilidades essenciais, como trabalho em equipe, pensamento crítico e resolução de problemas complexos, estando, desse modo, mais adaptados e alinhados às demandas da vida contemporânea. 

É importante ressaltar que a implementação de um ensino híbrido diferenciado requer sobretudo planejamento adequado, formação dos professores e infraestrutura tecnológica. É necessário garantir que os estudantes tenham acesso aos recursos necessários e possam também receber o suporte adequado para aproveitar ao máximo essa modalidade de ensino. 

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SENA, I.J. Os desafios da docência diante do modelo de ensino híbrido na universidade mercantilista [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2024 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2024/01/23/os-desafios-da-docencia-diante-do-modelo-de-ensino-hibrido-na-universidade-mercantilista/

 

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