O perfeito cozinheiro de Oswald de Andrade, Miss Cyclone, et al.

João Queiroz, Professor do Instituto de Artes da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora, Brasil.

Ana Fernandes, pesquisadora pelo Programa Pós-Doutorado Nota 10 (PDR10) da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC), Rio de Janeiro, Brasil.

“O perfeito cozinheiro das almas deste mundo” é inclassificável. Não sabemos bem, até hoje, o que fazer com ele, em termos teóricos, críticos e histórico. Trata-se de um livro-de-artista? Um livro-objeto? Um anti-livro? É apenas um exercício de “jovens doidos”? Um ensaio de preparação às experiências realmente sérias de Oswald de Andrade (“Memórias sentimentais de João Miramar”, e “Serafim Ponte Grande”)? Não é mais do que o experimento que dá o pontapé inicial de nosso modernismo literário? 

“O perfeito cozinheiro” é um caderno de contabilidade preto, de capa dura, de 25x34cm, com 200 páginas numeradas. Coberto de colagens, bricolagens, desenhos, ilustrações, fotos, cartões, objetos, carimbos, ready-mades verbais, balões de HQ, trocadilhos e fragmentos de textos. Ele é o mais radical experimento de literatura multimodal que antecede a Semana de Arte Moderna de 1922. 

O que observamos aqui (Figura 1), em sobrecapa vermelha, é a edição fac-símile da Editora Ex-Libris, que publicou, em 1987, uma tiragem de 300 exemplares. Resultado de um projeto espantoso, coordenado por Frederico Nasser, com apoio do Instituto Moreira Salles (IMS), que preservou micro-detalhes. 

“Foi necessário recriar todos os elementos originais: tingir o caderno de cor creme, pautá-lo com traço cinza, acertar os vários tons de tinta em que foi redigido o diário (violeta, verde, vermelho e lápis), fazer passar o papel até oito vezes pela impressora, reproduzir todas as collages que foram coladas no diário: cartas de diferentes tipos, cartões-postais, recortes de jornais, figurinhas para crianças, enfim, uma parafernália editorial que significou vários anos de trabalho” (SCHWARTZ, 2014).

Sabemos, pelo próprio Oswald, em “O homem sem profissão: sob as ordens de mamãe”, que a obra foi elaborada entre 1918 e 1919, na garçonnière que ele alugara na “rua Líbero Badaró, nos fundos de um terceiro andar”. Frequentavam a garçonnière, e seu anti-livro multimodal e performático, João de Barros, Ignácio Ferreira, Edmundo Amaral, Léo Vaz, Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato, e Maria de Lourdes Castro de Andrade, amante de Oswald. 

Imagem: acervo dos autores.

Figura 1. Sobrecapa (jacket) de “O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”.

Suas intervenções são todas através de pseudônimos, que eles embaralham para libertar a performance cênica e autoral. João de Barros é Pedro Rodrigues de Almeida; Ferrignac Jeroly e Ventania são Ignácio da Costa Ferreira; G., Garoa e Miramar são Oswald de Andrade; Foguinho, Viviano e Viruta são Edmundo Amaral; Bengala é Léo Vaz; Guy é Guilherme de Almeida; Ancylostomo e Frei Lupus são Monteiro Lobato. Daisy, Dasinha, Deise e Miss Cíclone são Maria de Lourdes Castro de Andrade.

Com a ideia de recolocar em circulação “O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”, nós, Iconicity Research Group (IRG), organizamos o dossiê Palavras dos editores convidados. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo: o experimento intermidiático e multi-autoral de Oswald de Andrade (et al.), publicado na Alea: Estudos Neolatinos. Um ano depois das discussões sobre o centenário da Semana de Arte Moderna, em 2022, período em que falamos muito sobre Oswald, e muito pouco sobre “O perfeito cozinheiro”, ficou ainda mais evidente que não podemos continuar nos dando ao luxo de ignorá-lo. “A nossa pobre literatura / tão fechada e tão chata / não se pode dar ao luxo de ignorar / coisas como essa” (sugere Augusto de Campos, sobre outra experiência, de outra forma e dentição, “Os Cadernos de Pagu”). 

Precisamos fazer um tratamento mais sistemático deste laboratório de insubordinação, intermidiático e multi-autoral. Não existem exemplos radicais assim, do início do século XX, dando sopa, em qualquer tradição literária. Como um meta-objeto orientado à ação, no limite entre a vida e a arte, da “vida em ação”, ele “não se destinava à publicação nem se pautava como obra de Oswald de Andrade” (JACKSON, 2013, p. 151), ou de Cyclone, ou de qualquer frequentador da garçonière. 

“Germe das posições radicais assumidas por Oswald nas décadas seguintes” (cf. Rost, dossiê), pré-dadaísta (cf. Eduardo Jorge, dossiê), neobarroco tropical (Amálio Pinheiro, dossiê), proto-surrealista, ícone metassemiótico da devoração, da devoração como tendência e como destino na cozinha de Oswald (cf. Lúcio Agra, dossiê), “O perfeito cozinheiro” é de onde, “do avesso do avesso à margem da margem”, “partem vozes insólitas capazes de perturbar a toada e o coro monótonos ouvidos à passagem dos autores mais acomodatícios e mais digeríveis” (Augusto de Campos, 1989, p. 9).

Referências

CAMPOS, A. À margem da margem. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1989.

JACKSON, K.D. Oswald de Andrade e André Breton paixões loucas, loucos textos. Remate de Males [online]. 2013, vol. 33, pp. 149-168 [viewed 02 February 2024]. https://doi.org/10.20396/remate.v33i1-2.8636450. Available from: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636450  

SCHWARTZ, J. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo: diário ou ficção? In: ANDRADE, O. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Globo, 2014,  pp. 37-58.

Links externos

Alea Estudos Neolatinos – SciELO: https://www.scielo.br/j/alea

Revista Alea UFRJ – Twitter: https://twitter.com/RevistaAleaUfrj

Ana Fernandes – ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3598-2916

João Queiroz – ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6978-4446  

Grupo de pesquisa Iconicity Group: https://www.instagram.com/iconicitygroup/

Publicação sobre o dossiê da ALEA: https://www.instagram.com/p/C0UnvR6viHP/?img_index=1