“Tá repreendido em nome de tu mesmo”

Carlos Gontijo Rosa, Professor da Universidade Federal do Acre, Cruzeiro do Sul, Acre, Brasil.

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No artigo Sobre incompatibilidade e estranhamento: o enunciado da cristofobia e suas escalas de sentido em charges online (Bakhtiniana, 2024, vol. 19, no. 1), a pesquisadora da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Carolina Cavalcanti Falcão, apresenta uma análise da cadeia discursiva em torno do termo “cristofobia”, especialmente em dois momentos distintos: no discurso do ex-presidente do Brasil na sessão de abertura da Assembleia Geral da ONU, em 2020, e em charges publicadas pelo artista André Lafayete em sua conta pública do Instagram, no mesmo mês. Sua abordagem ressalta a incompatibilidade do uso do termo pela comunidade cristã brasileira, nomeadamente a evangélica (ou neopentecostal, para ser mais específico), destacada de forma irônica nas charges de Lafayete.

Dos enunciados de Lafayete, vale destacar que, quando coloca Jesus Cristo como protagonista das suas charges, dialogando com figuras representativas dos seguidores fanáticos do ex-presidente, a “cristofobia” é encarada como a intolerância a Cristo e aos seus ensinamentos, veiculados pelos evangelhos. Opera-se aí, portanto, uma ressignificação do termo, pois a autora mostra como ele foi utilizado no “discurso motivador” das charges com o sentido de aversão aos valores cristãos. 

O termo “cristão” é também utilizado com o sentido de representação de apenas uma parcela dos seguidores de religiões de matriz cristã, aquela cujo discurso é afeito a uma moral propagada por séculos pela Cristandade, mas que destoa dos ensinamentos que circulam nas Escrituras sagradas do Novo Testamento.

Em sua pesquisa, Falcão afirma que “a cristofobia interessa muito mais pela forma como se apresenta discursivamente inusitada do que pela sua capacidade de formular um conceito, ou de apreender a realidade”; a partir daí, ela destaca a incompatibilidade entre o discurso dos fanáticos seguidores do ex-presidente brasileiro – que se autoproclamam “cristãos” – e os valores cristãos extraídos dos evangelhos, especialmente de João e de Mateus. 

Figura 1. Cristofobia

Essa discussão é deflagrada a partir dos enunciados concretos das charges de Lafayete, que, em resposta imediata ao discurso proferido pelo ex-presidente na Assembleia Geral da ONU, coloca em confronto a figura de Jesus Cristo com figuras representativas do seguimento social que fanaticamente seguem o dirigente do país naquele momento. Para tanto, a autora evoca o conceito de “memória fora do lugar” (cf. Castelli, 2007) e a alternância da identidade cristã, que ora se representa como minoritária, ora como majoritária na sociedade brasileira, num “jogo de escalas e manuseio de identidades”.

Olhando para o artigo discursivamente, é importante ressaltar que a autora consegue articular escrita acadêmica e posicionamento ideológico em seu texto, valorando os discursos analisados inseridos em seu contexto; aliás, ela própria, enquanto autora, tem seu posicionamento ideológico marcado no discurso. 

Um dos aspectos que denotam seu posicionamento é a ausência do nome do ex-presidente do Brasil no artigo. Ao observarmos esse apagamento do indivíduo na cadeia discursiva retomada por Falcão, observamos que o ex-dirigente do país aparece unicamente como reprodutor de um discurso em que “aspectos éticos e econômicos (…) se mostram inconciliáveis com os dizeres de Cristo”. 

Na realidade, essa opção de referir-se a ele por meio de perífrases parece visar a não propagação do seu nome e evitar, assim, o “efeito contágio”, como nos noticiários de ataques a escolas, em que se evita divulgar dados dos atiradores para que os casos não sirvam de inspiração para outros. Ou porque a autora não queria esse nome vinculado ao seu. Seja qual for o caso, é uma ausência que sublinha um posicionamento.

Ainda que o artigo pretenda analisar os dois conjuntos de enunciados em sua relação na cadeia discursiva que compõem, Falcão, de modo cientificamente responsável, em nenhum momento qualifica tais enunciados. Entretanto, enquanto leitor que dialogicamente completa os sentidos dos textos (Bakhtin, 2006, p. 378), especialmente durante a primeira seção do texto (“Cristofobia no Brasil? Delimitando o contexto, situando o enunciado”), não pude deixar de pensar os discursos do ex-presidente enquanto falaciosos, conforme definição de Warat (1984, p. 36): “os lógicos usam a expressão ‘falácias não formais’ para se referirem aos raciocínios desprovidos de rigor lógico. Ou seja, ao conjunto de afirmações obtidas transgredindo ou não considerando devidamente as regras de derivação de um raciocínio lógico estrito”. 

Referências

BAKHTIN, M. Apontamentos 1970-1071. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, p. 378.

CASTELLI, E. Persecution complexes: Identity, Politics and the “War on Christians”. Brown University and differences: A Journal of Feminist Cultural Studies [online]. 2007, vol. 18, no. 3, pp. 155-156 [viewed 15 February 2024]. https://doi.org/10.1215/10407391-2007-014. Available from: https://read.dukeupress.edu/differences/article-abstract/18/3/152/34261/Persecution-Complexes-Identity-Politics-and-the 

WARAT, L.A. Técnicas argumentativas na prática judicial. Trad. Horácio Wanderlei Rodrigues. Sequência Estudos Jurídicos e Políticos [online]. 1984, vol. 5, no. 9, pp. 35-56 [viewed 15 February 2024]. Available from: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16731

Para ler o artigo, acesse

FALCÃO, C. C. Sobre incompatibilidade e estranhamento: o enunciado da cristofobia e suas escalas de sentido em charges online. Bakhtiniana [online]. 2024, vol. 19, no. 1, e63356p [viewed 15 February 2024]. http://doi.org/10.1590/2176-4573p63356. Available from: https://www.scielo.br/j/bak/a/4V9rXfQWM4zyfNn4JJwQ7NC/ 

Links externos

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

ROSA, C.G. “Tá repreendido em nome de tu mesmo” [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2024 [viewed ]. Available from: https://humanas.blog.scielo.org/blog/2024/02/15/ta-repreendido-em-nome-de-tu-mesmo/

 

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