Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
O artigo Da Independência ao Império: saúde e doença no Brasil do século XIX, escrito por Gilberto Hochman, Tânia Salgado Pimenta e Ricardo Cabral de Freitas, todos historiadores, para a Edição 27.9.2022 da Revista Ciência & Saúde Coletiva, comemora, nos 200 anos da Independência do Brasil, o papel e o lugar do campo da saúde. Os autores enfatizam os efeitos da relativa emancipação política do país no processo de institucionalização da medicina no período imperial e início do século XX, revelando continuidades, contradições e instabilidades que marcaram todo esse processo histórico-social.
Os autores contrastam o Brasil moderno imaginado pelas elites médicas e políticas por ocasião do I Centenário da Independência em 1922 com os problemas do campo da saúde que a república, em sua terceira década, herdou dos períodos colonial e imperial. Também destacam questões da história da saúde no século XIX, que permitem refletir sobre as promessas civilizacionais não cumpridas de 1822 a 1922.
O ano do primeiro centenário foi cheio de celebrações, mas também ocorreu num clima de crise política, econômica e de eleições. Em setembro de 1923, fechando os festejos, saiu uma edição especial do Almanak Laemmert (2023) comemorando o ciclo de solenidades, cujo ápice foi a inauguração da Exposição Internacional do Rio de Janeiro. A publicação tratou dos notáveis avanços civilizatórios, sugerindo que o Brasil republicano ingressara na modernidade. Vários de seus capítulos foram escritos por membros destacados da intelectualidade, dentre os quais, Capistrano de Abreu, Afrânio Peixoto, Barbosa Lima Sobrinho e Gustavo Barroso. Todos celebravam as conquistas do Brasil independente na cultura, nas ciências, na economia e na religião.
O capítulo do Almanaque sobre a medicina dissertou sobre suas contribuições para o progresso do país: extinção da febre amarela no Rio de Janeiro e nas grandes cidades brasileiras, conduzida com estrondosa vitória por Oswaldo Cruz; a profilaxia rural, a vacinação obrigatória, a campanha contra doenças venéreas, tuberculose, lepra, ancilostomíase e impaludismo, postos em execução pelo dileto discípulo de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas; a assistência aos doentes mentais levada a cabo por Juliano Moreira e Franco da Rocha; a higiene das habitações, a fiscalização dos produtos alimentícios, e muitas outras medidas tomadas pelo Departamento Geral de Saúde Pública (TEIXEIRA et al, 2018; HOCHMAN et al, 2022).
No entanto, o tom triunfalista sobre o papel dos médicos e da medicina encobriu muitas questões e emudeceu diversos atores: o protagonismo era dos médicos, todos homens, membros das elites e portadores de visões hierarquizantes sobre sociedade, subordinando os outros e outras profissionais de saúde. No que era considerado atraso, apagou-se a memória das práticas e dos praticantes de cura de origem africana e indígena. A própria população não apareceu nas façanhas triunfalistas: era um ator sem voz, cor e gênero. Por fim, as diferenças regionais e da escravidão foram totalmente ignoradas nas comemorações. No caso da saúde, apenas os “sábios” da medicina diplomada apareceram.
A partir do último quarto do século XX, a história da medicina brasileira transformou-se em história da saúde coletiva, dando um salto qualitativo, protagonizado por um importante movimento social que juntou todas as classes de profissionais, gestores e políticos e foi responsável pela criação e construção do SUS: polifônico, contextualizado, integrativo dos saberes curativos, concepções sobre o corpo, experiências de adoecimento, políticas de saúde e aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais da sociedade (Paim, 2008). Tudo isso ocorreu no compasso de redemocratização do país, após anos de ditadura militar.
Este bicentenário da Independência outra vez acontece em meio a uma séria crise social, econômica e política. É importante rever a história, ver o que foi feito e o que está por fazer, tarefa de todos os cidadãos. Revê-la faz perceber os erros e traz esperança. O SUS, cheio de problemas e contradições, vai sobrevivendo e leva assistência e cuidados a quase toda a população brasileira. É hoje a política social mais importante, organizada e integradora do país. Mas falta-lhe muito, sobretudo uma gestão eficiente, competente e compreensiva e financiamento adequado. Trabalhar juntos é preciso, para que as celebrações do bicentenário não sejam fogos de artifício e nem apenas um evento militar. Mas sim, traga alento e esperança para toda a população brasileira.
Referências
Livro de Ouro Comemorativo do Centenário da Independência do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, Almanak Laemmert, 1923.
PAIM, J.S. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. EDUFBA-FIOCRUZ, 2008.
TEIXEIRA, L.A., PIMENTA, T.S. and HOCHMAN, G. (orgs). História da Saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec Editora, 2018.
Para ler o artigo, acesse
HOCHMAN, G., PIMENTA, T.S. and FREITAS, R.C. Da Independência ao Império: saúde e doença no Brasil do século XIX. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2022, vol. 27, no. 9, pp. 3375-3377 [viewed 21 September 2022]. https://doi.org/10.1590/1413-81232022279.08812022. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/YPnvJc5qgrgbDwHRpSJWmyN/
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