Editores e revisores devem se atentar para a legalidade de objetos culturais em produções científicas

Alexander W.A. Kellner, Professor Titular no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Logo do periódico Anais da Academia Brasileira de CiênciasHistórico colonial, invasões ou simplesmente atos que ignoram a legislação de países acabam resultando na retirada de exemplares que se traduzem na cultura de um país. Também o nosso país tem sido afetado por essa situação, sobretudo por sua riqueza cultural, com itens muitas vezes retirados do território nacional sem a observância das leis, o que é discutido em Cultural objects at risk – the responsibility of reviewers and editors, nota editorial publicada nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.

Devido a apelos a ações de diferentes setores e instituições brasileiras, o Conselho Internacional de Museus (ICOM) acaba de publicar uma nova Lista Vermelha relacionado aos objetos culturais em risco, agora enfatizando o Brasil. Pela primeira vez, objetos paleontológicos fazem parte desse tipo de ação (ICOM, 2022), uma ação muito bem vinda para quem defende a cultura no nosso país.

A questão dos fósseis no Brasil é um assunto de grande complexidade. Existem diversas peças jurídicas que podem ser aplicadas em relação às extrações e posse de exemplares paleontológicos (SBP, 2019).Como diversas vezes tem sido argumentado, o Decreto-Lei de 1942 (BRASIL, 1942) continua sendo a base de toda discussão sobre a situação do fóssil no país. Reza esse decreto-lei que fósseis pertencem a União e somente podem ser extraídos mediantes uma autorização que hoje em dia é emitida pela Agência Nacional de Mineração. Museus nacionais, universidades e instituições congêneres estão isentos, bastando comunicar as suas atividades. Participação de estrangeiros é regulado por outra legislação (SBP, 2019).

Como se sabe, existe muito material paleontológico brasileiro, especialmente da Bacia do fora do país, às vezes sob condições bastante discutíveis (p.ex. VOGEL, 2020). Esse é o caso do dinossauro “Ubirajara”, que foi depositado no Staatliches Museum für Naturkunde Karlsruhe (Alemanha). Uma vez verificado que o fóssil saiu do país ilegalmente, o artigo “A maned theropod dinosaur from Gondwana with elaborate integumentary structures”, que descrevia o dinossauro, foi retirado de publicação (SMYTH, 2020). Essa atitude inédita, que pode ser vista com um divisor de águas para a paleontologia nacional, fez com que fósseis que deixaram o país de forma inadequada começassem a ser devolvidos (KELLNER, 2023).

Libélula fóssil (parte e contraparte), encontrada nas camadas calcárias da Formação Crato (115 milhões de anos), exploradas por mineradoras locais. Material perdido no incêndio do Museu Nacional/UFRJ.

Imagem: KELLNER, 2019.

Figura 1. Libélula fóssil (parte e contraparte), encontrada nas camadas calcárias da Formação Crato (115 milhões de anos), exploradas por mineradoras locais. Material perdido no incêndio do Museu Nacional/UFRJ.

Porém, alguns pesquisadores tem se colocado favoravelmente à comercialização de fósseis (FEBRAGEO, 2022). Um dos argumentos mais comuns diz que os fósseis podem ser vendidos oficialmente no Brasil por uma mineradora que tenha obtido legalmente os direitos de exploração de uma jazida mineral que contenha material paleontológico. Essa noção, no entanto, é mal concebida, pois essas empresas vendem os produtos minerais que extraem como substâncias minerais e não como fósseis, mesmo que essas substâncias minerais contenham fósseis. Ou seja, nenhuma mineradora vende dinossauros para servirem de aterros sanitários, serem utilizados como produtos agrícolas ou como produtos industrializados!

Tentar fazer a equivalência de depósitos minerais contendo fósseis e fósseis propriamente ditos é um erro. Também não se sustenta que a legislação atual impeça a distribuição eventual de material paleontológico para escolas, como diz outro argumento empregado de forma equivocada. Não é preciso fomentar a venda de fósseis para que museus, universidades e instituições congêneres possam fazer doação de exemplares para fins educativos, que tem sido realizado de forma regular sem nenhum impedimento ou complicação legal.

Por outro lado, não se pode negar que existem vários tipos de fósseis, cuja origem está relacionada a substâncias minerais importantes para a sociedade, como o calcário, que é utilizado na produção de cimento. Isso significa que, a menos que a mineração em áreas sedimentares com potencial de ocorrência de fósseis seja proibida, algo que não está na mesa de discussão em nenhum país, (é inevitável que os espécimes paleontológicos sejam destruídos pela atividade mineradora e perdidos para a ciência.

Os que se posicionam de forma contrária a comercialização de fósseis argumentam, por exemplo, que todos os fósseis possuem a mesma importância, o que não corresponde à realidade. Se assim o fosse, paleontólogos em todo mundo não fariam a seleção no campo do que vão ou não coletar, o que é bastante comum, inclusive no Brasil. Além de ser questionável se todo o fóssil encontrado deveria ser coletado, é irreal pensar que existem recursos para coletar e armazenar todos os fósseis.

Ainda falando em termos de Brasil, são diversas as possibilidades de promover a boa ciência sem privar um país de sua herança cultural e científica (KELLNER, 2023). Há, além de toda atividade de alertar as instituições de pesquisa sobre a situação legal do fóssil encontrado no Brasil, há a necessidade de mais recursos para a realização de trabalhos de campo visando a descoberta e coleta de novos espécimes. Porém, é fundamental que se tenha claro que, independentemente de quem defende que fósseis sejam bens minerais em contraposição a quem advoga serem bens culturais, não se pode esquecer que eles são bens científicos que contribuem para um conhecimento da evolução e diversificação da vida no nosso planeta no tempo profundo.

Importante destacar que periódicos devemos dar muita atenção aos aspectos legais dos estudos de itens que podem ser considerados patrimônio cultural e científico de um país. Se as revistas científicas começarem a recusar trabalhos sobre objetos obtidos ilegalmente, certamente o problema do tráfico ilícito desse tipo de objeto diminuirá. Essa transparência e cautela são cada vez mais necessárias nos dias de hoje e mais uma (das muitas) atribuições de revisores e editores.

Sobre Alexander W.A. Kellner

Professor Titular e membro da Academia Brasileira de Ciências, é editor chefe dos AABC. Realizou doutorado na Columbia University (Nova York) e atua no Museu Nacional/UFRJ, para qual foi eleito diretor (2018-2022). Desenvolve pesquisas na área de paleontologia, em especial a evolução e diversificação de répteis fósseis, sobretudo dinossauros e pterossauros (vertebrados alados). Além de diferentes regiões brasileiras, realizou atividades de campo em países como Antártica, Irã, China, Argentina e Chile.

Referências

BRASIL. Decreto-Lei Nº 4.146, de 4 de março de 1942. Dispõe sobre a proteção dos depósitos fossilíferos. 1942 [viewed 22 June 2023]. Available from: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4146-4-marco-1942-414164-publicacaooriginal-1-pe.html

ICOM. Red List of Brazilian Cultural Objects at risk [online]. International Council of Museums. 2022 [viewed 22 June 2023]. Available from: https://icom.museum/wp-content/uploads/2023/02/Red-List-Brazil_Page_Final_EN.pdf

KELLNER, A.W.A. A reconstrução do Museu Nacional: bom para o Rio, bom para o Brasil. Ciência e Cultura [online]. 2019, vol. 71, no. 3, pp. 4-5 [viewed 22 June 2023]. http://doi.org/10.21800/2317-66602019000300001. Available from: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252019000300001&tlng=pt

KELLNER, A.W.A. Fósseis, leis e bom senso. In: Anais: resumos da 74ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. São Paulo, 2023 [viewed 22 June 2023]. Available from: https://livro.sbpcnet.org.br/74ra/

KUHN, R. Fósseis e a legislação brasileira: o que é preciso mudar? Federação Brasileira de Geólogos – FEBRAGEO. 2022 [viewed 22 June 2023]. Available from: https://www.febrageo.org.br/fosseis-e-a-legislacao-brasileira-o-que-e-preciso-mudar

SBP. Legislação Brasileira [online]. Sociedade Brasileira De Paleontologia. 2019 [viewed 22 June 2023]. Available from: https://sbpbrasil.org/legislacao-brasileira/

SMYTH, R.S.H, et al. WITHDRAWN: A maned theropod dinosaur from Gondwana with elaborate integumentary structures. Cretaceous Research [online]. 2020, 104686 [viewed 22 June 2023]. https://doi.org/10.1016/j.cretres.2020.104686. Available from: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0195667120303736

VOGEL, G. Chicken-size dino with a furlike mane stirs ethic debate [online]. Science. 2020 [viewed 22 June 2023]. https://doi.org/10.1126/science.abg2318. Available from: https://www.sciencemag.org/news/2020/12/chicken-size-dino-furlike-mane-stirs-ethics-debate

Para ler o artigo, acesse

KELLNER, A.W.A. Cultural objects at risk – the responsibility of reviewers and editors. An. Acad. Bras. Ciênc. [online]. 2023, vol. 95, no. 1, e2023951 [viewed 22 June 2023]. https://doi.org/10.1590/0001-37652023951. Available from: https://www.scielo.br/j/aabc/a/rcgrwmMCmyP8KK88wYfn8MJ/

Links externos

Anais da Academia Brasileira de Ciências – AABC: www.scielo.br/aabc/

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

KELLNER, A.W.A. Editores e revisores devem se atentar para a legalidade de objetos culturais em produções científicas [online]. SciELO em Perspectiva | Press Releases, 2023 [viewed ]. Available from: https://pressreleases.scielo.org/blog/2023/06/22/editores-e-revisores-devem-se-atentar-para-a-legalidade-de-objetos-culturais-em-producoes-cientificas/

 

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