Antropoceno recusado – e agora?

Alexander W. A. Kellner, Editor-Chefe, Anais da Academia Brasileira de Ciências, Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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Há tempos, vários investigadores abraçaram a ideia de que vivemos atualmente em condições ambientais tão diferentes dos últimos séculos que deveríamos separá-la numa unidade de tempo geológica distinta. A situação do Rio Grande do Sul é, para nós, brasileiros, bem mais do que um sinal de alerta de que algo está mudando…

Os especialistas que se enquadram na designação de cientistas da Terra – sobretudo os geólogos e os paleontólogos – dividem o registo geológico do nosso planeta, expresso em rochas, de acordo com eventos que tiveram impacto em escala global. Assim, a época na qual vivemos e que se iniciou ao final da última glaciação – há cerca de 11.700 anos – é chamada de Holoceno. 

A certa altura, o químico ambiental Paul Crutzen usou a designação de Antropoceno procurando enfatizar para a sociedade que os tempos atuais, em termos de ambiente, são muito, mas muito diferentes do restante do Holoceno! Essa expressão já havia sido utilizada anteriormente, tendo aparecido até mesmo na literatura russa. Porém, independentemente de quem deve ser creditado, o fato é que o termo Antropoceno pegou – com seus prós e contras.

Fotografia de uma enchente, exibindo uma placa de "semáforo à frente" quase completamente submersa.

Imagem: Unsplash.

Há pouco, o Grupo de Trabalho Interdisciplinar sobre Antropoceno (AWG), que havia sido estabelecido para estudar este assunto, forneceu uma recomendação à Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS). Esta última, parte da União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS), pode ser considerada uma espécie de “guardiã” do tempo geológico! E a ICS recusou a proposta do Antropoceno, decisão validada pela IUGS. Desde então, protestos têm sido observados e tendem a aumentar.

Sou geólogo e conversando com os meus pares a pergunta que se faz é se essa recusa realmente importa. O ponto principal é que não existe justificativa para a criação de uma nova época, até mesmo pela imprecisão dos limites entre as diferentes unidades de tempo geológico, que comumente se dão na escala de milhares de anos. 

A comissão AWG sugeriu que a “extinção” do Holoceno teria se dado com os primeiros testes de armas nucleares, que resultaram na concentração de plutônio em algumas camadas. Ou seja, pela proposta, o limite entre Holoceno e Antropoceno teria se dado por volta de 1950, o que significa que a nova época teria menos de um século. Para a maioria dos cientistas que tratam do assunto isso não faz o menor sentido, já que não conseguimos medir as variações de toda a história do nosso planeta na escala de 100 anos… 

Já existe um grande número de pessoas que não mais questionam as mudanças no planeta e acreditam que o sábio Homo sapiens tem alguma responsabilidade nisso. Mesmo que os atuais efeitos da humanidade possam ser adequadamente refletidos no registo geológico para justificar o estabelecimento de uma nova época, precisaremos de vários milhares de anos para fazer uma medição que faça algum sentido. Claro, isso se a humanidade não for extinta antes e, de alguma forma, aprender a superar os desafios atuais que incluem os perigos crescentes de uma guerra nuclear. 

Ademais, no caso de um conflito envolvendo armas atômicas, um cenário que desagradavelmente já há muito deixou de ser apenas um roteiro de ficção científica, talvez os sobreviventes (se houver) terão questões mais prementes para lidar. Sem falar que um evento tão trágico deixaria muito mais evidências nas camadas do que as sugeridas pelo AWG, levando a uma extinção precoce do Antropoceno e, talvez, à necessidade da introdução de uma nova unidade de tempo. 

Argumentos na linha de que uma nova época aumentaria a consciência da população sobre o que se passa são simplórios e mal concebidos. Deixemos as questões da divisão do tempo profundo para os pesquisadores que atuam no tema, e nos concentremos – com ou sem uma nova época para chamar de nossa –, em atuar, com ajuda da mídia, no esclarecimento dos efeitos que o nosso modo de vida está tendo sobre os ecossistemas atuais. 

Também devemos procurar apresentar e discutir soluções viáveis e as consequências de “não fazer nada”. Ações em escolas para as futuras gerações e iniciativas em instituições culturais, como exposições em museus, são algumas das atividades que poderão despertar a conscientização e sensibilizar o público. Este, por sua vez, poderá exercer a sua influência naqueles que tem o real poder de tomar as decisões certas e mitigar o caos que parece estar a nossa frente. Quem sabe, o Homo sapiens passe, em algum momento, a ser mais sapiens e entender a necessidade de agir o quanto antes. E, olhe que, para alguns, já é meio tarde…

Para acessar o artigo, acesse

KELLNER, A.W.A. Anthropocene epoch proposal rejected – does it really matter? An. Acad. Bras Cienc. [online]. 2024, vol. 96, no. 2, e2024962 [viewed 18 June 2024]. https://doi.org/10.1590/0001-376520242024962. Available from: https://www.scielo.br/j/aabc/a/6hDghr9gqFnQGwYy3Tr6T7x/ 

Links externos

Anais da Academia Brasileira de Ciências – AABC: www.scielo.br/aabc/

Alexander W. A. Kellner – ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7174-9447

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

KELLNER, A.W.A. Antropoceno recusado – e agora? [online]. SciELO em Perspectiva | Press Releases, 2024 [viewed ]. Available from: https://pressreleases.scielo.org/blog/2024/06/18/antropoceno-recusado-e-agora/

 

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