Kris Herik de Oliveira, Doutor em Ciências Sociais e Bolsista Fapesp de Jornalismo Científico (2023/11803-9), Labjor/Unicamp, Campinas/SP, Brasil.
Buscando oferecer novas contribuições para a temática da sexualidade entre os mais jovens, em sua edição vol. 33 n.º 1 (2024), o periódico Saúde e Sociedade publicou o dossiê Juventudes e sexualidades na era digital: desafios metodológicos e inspiração para renovar a pesquisa e a promoção da saúde sexual e reprodutiva.
Os quatro artigos que compõem o dossiê são fruto de dois projetos complementares sobre os “jovens da era digital”. Trata-se de um estudo socioantropológico realizado entre 2021 e 2022, que envolveu entrevistas individuais em profundidade com 194 jovens de 16 a 24 anos, abordando questões relacionadas à sexualidade, aos direitos reprodutivos e à sociabilidade juvenil em seis diferentes cidades do país, sob a coordenação geral da Prof.ª Dr.ª Cristiane da Silva Cabral (FSP/USP).
Cabe assinalar que a pesquisa foi marcada pelo contexto da pandemia de Covid-19, que foi considerada criticamente em seus efeitos na vida dos jovens participantes. Além disso, o estudo foi realizado durante um momento de guinada conservadora nas políticas de gênero e sexualidade no país, especialmente aquelas direcionadas à população mais jovem, e registra esse contexto.
Segundo Cabral (2024, p. 2), os artigos apresentados são importantes porque “lidam com temas considerados da esfera ‘privada’, mas que estão sob regulação do Estado e de diversas instâncias socializadoras”. Através dos trabalhos é possível acessar o que os membros de uma geração partilham de experiências em comum, apesar de sua heterogeneidade atravessadas por marcadores sociais da diferença (como classe, raça, gênero e sexualidade), tanto do ponto de vista do tempo histórico em que vivem quanto do modo como concebem a própria realidade.
O grupo etário é destacado por ser uma fase da vida chamada de “transição para a vida adulta”, que se faz mediada por um conjunto de eventos de esfera econômica, cultural e psicossocial. São exemplos a entrada no mercado de trabalho, novas experiências educacionais, o início de relações afetivo-sexuais, experiências de reprodução, e os novos processos de regulação do próprio corpo e das práticas sociais.
O artigo introdutório de autoria de Cabral (2024), intitulado Juventudes, sexualidade e saúde: reflexões teóricas e metodológicas a partir de uma pesquisa multissituada sobre trajetórias afetivo-sexuais juvenis, apresenta perspectivas teóricas e pressupostos metodológicos que subsidiaram a pesquisa “Jovens da era digital”. Às noções de juventude e de transição para a vida adulta, soma-se a compreensão do aprendizado da sexualidade e do gênero, que são aspectos fundamentais para a investigação realizada.
O exame detalhado da metodologia da investigação é seguido por uma análise das dificuldades encontradas durante o estudo, das abordagens adotadas ao longo do trabalho de campo e das condições atuais para conduzir pesquisas científicas com jovens de diferentes contextos sociais. O artigo também discute as recentes disputas morais relacionadas à sexualidade juvenil, que têm influenciado consideravelmente as políticas públicas destinadas a adolescentes e jovens.
O artigo Singular ou plurais? Diversificação dos percursos/processos de iniciação sexual de jovens brasileiros(as), de autoria de Cristiane da Silva Cabral (FSP/USP), Nathália Pacífico de Carvalho (FM/UFMG) e Guilherme Lamperti Thomazi (FSP/USP), discute os processos de entrada na sexualidade com a pessoa parceira, abordando questões relativas às permanências e/ou às mudanças das relações de gênero e moralidade que circunscrevem o exercício da sexualidade nesta etapa da vida.
Ao analisar três biografias de pessoas nascidas na era digital, o artigo ilustra a diversidade e a complexidade dos processos de socialização, frequentemente simplificados nos estudos de saúde coletiva. Nesse sentido, contribui para refletirmos sobre o conceito de “iniciação sexual” e sobre como ampliar a perspectiva de “sexo como risco”.
No artigo A contracepção como um valor: histórias de jovens sobre desafos no uso e manejo dos métodos, de Ana Paula dos Reis (ISC/UFBA), Andrea Del Pilar Trujillo Rodríguez (FSP/USP) e Elaine Reis Brandão (IESC/UFRJ), são destacadas as trajetórias típicas das escolhas contraceptivas entre 86 mulheres cis de diferentes perfis que começaram a vida sexual.
Embora essas mulheres utilizem preservativos na iniciação sexual, ao longo do tempo, há um aumento na adesão a métodos hormonais, incluindo o uso frequentemente normalizado da contracepção de emergência disponível nas farmácias. Além disso, há uma crescente preocupação com os efeitos colaterais dos métodos hormonais.
Na perspectiva das mulheres entrevistadas, os parceiros frequentemente continuam a responsabilizá-las pela contracepção e mostram desconforto com o uso da camisinha, embora compartilhem a preocupação de suas parceiras quanto aos efeitos a longo prazo dos métodos hormonais no corpo feminino, uma característica marcante dessa geração.
Em relação ao artigo de Reis, Rodríguez e Brandão (2024), a pesquisa confirma que a multiplicação de vozes e posições disponíveis na internet, através de sites e redes sociais, substitui a falta de políticas públicas e de conversas mediadas por profissionais capacitados sobre esses temas.
Por outro lado, a interação e a busca por informações nas redes sociais contribuem positivamente para a valorização da atitude de procurar contracepção para prevenir a gravidez, reforçando o desejo e a decisão de escolher quando (e se) ter filhos. Essa mudança representa uma transformação significativa e estabilizada na experiência de socialização relacionada à sexualidade e ao gênero.
O último artigo do dossiê, Aids e prevenção do HIV entre adolescentes e jovens em seis municípios brasileiros, com autoria de Daniela Riva Knauth (FM/UFRGS) e Flávia Bulegon Pilecco (FM/UFMG), endossa a importante discussão sobre a incidência de HIV/aids entre jovens. Para os entrevistados, a aids é vista como uma “doença sem rosto,” tornando impossível identificar quem está infectado com HIV.
As percepções sobre o HIV variam entre o medo e a crença de que a doença é tratável. O risco é considerado abstrato e não é uma preocupação central no cotidiano dos jovens, que se concentram mais na prevenção da gravidez. O uso de preservativos é visto como uma medida temporária de proteção, frequentemente substituída pela confiança na parceria sexual.
Além disso, Knauth e Pilecco (2024) destacam que as tecnologias de informação disponíveis parecem insuficientes para enfrentar o aumento do conservadorismo e a falta de políticas eficazes de prevenção do HIV entre os jovens. De acordo com as autoras, para melhorar a situação, seria necessário aprimorar a oferta de informações de qualidade, adaptadas aos interesses dos jovens, expandir a disponibilidade de diferentes métodos de prevenção e reintegrar as Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e o HIV nas discussões públicas.
De acordo com o editorial escrito pela Profa. Dra. Vera Paiva (2024, p. 1) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP), os trabalhos que compõem “este dossiê preenchem uma lacuna importante e contemplarão os(as) leitores(as) da Saúde e Sociedade com significativa atualização no âmbito da tradição das pesquisas brasileiras dedicadas às políticas públicas de proteção e promoção da saúde integral de adolescentes e jovens”. Além disso, chamam atenção para um “cenário sociopolítico mediado pelas redes sociais, enquanto já se observava o aumento da vulnerabilidade às IST e à aids dos(as) ‘nascidos na era digital’”.
Além do dossiê “Juventudes e sexualidades na era digital”, a edição vol. 33, n.º 1 (2024) conta com outros vinte e quatro artigos originais, cinco ensaios e um relato de experiência. Os temas abordados incluem migração e mortalidade por câncer, saúde da população negra, vacinação contra a Covid-19 e fatores socioeconômicos, assistência a gestantes, feminicídios, vulnerabilização em comunidades camponesas afetadas pela transposição do rio São Francisco, práticas integrativas de saúde, uso de psicotrópicos, gordofobia médica, vítimas indiretas de homicídios, experiências de pessoas trans universitárias, feminilidade(s) e maternidade(s), entre outros.
Referências
CABRAL, C.S. Juventudes, sexualidade e saúde: reflexões teóricas e metodológicas a partir de uma pesquisa multissituada sobre trajetórias afetivo-sexuais juvenis. Saúde e Sociedade [online]. 2024, vol. 33, no. 1, e240041pt [viewed 12 September 2024]. https://doi.org/10.1590/S0104-12902024240041pt. Available from: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/w5mKn7npyb94bKgQjwfC3bC/
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PAIVA, V. Introduzindo o dossiê “Juventudes e sexualidades na era digital: desafios metodológicos e inspiração para renovar a pesquisa e a promoção da saúde sexual e reprodutiva”. Saúde e Sociedade [online]. 2024, vol. 33, no. 1, e240276pt [viewed 12 September 2024]. https://doi.org/10.1590/S0104-12902024240276pt. Available from: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/rSy94fVjHbJ4FJBPkdqmM7F/
REIS, A.P., RODRÍGUEZ, A.D.P.T. and BRANDÃO, E.R. A contracepção como um valor: histórias de jovens sobre desafios no uso e manejo dos métodos. Saúde e Sociedade [online]. 2024, vol. 33, no. 1, e230803pt [viewed 12 September 2024]. https://doi.org/10.1590/S0104-12902024230803pt. Available from: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/K9fVgdt5nTcmSmHFJvCjGts/
Para ler a edição, acesse
https://www.scielo.br/j/sausoc/i/2024.v33n1/
Links externos
Revista Saúde e Sociedade (FSP/USP) – SciELO: https://www.scielo.br/j/sausoc/
Revista Saúde e Sociedade (FSP/USP) – Página institucional: https://www.revistas.usp.br/sausoc
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