Gestação de homens transexuais precisa de maior atenção dos serviços de saúde

Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 

Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 

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Estudo recente, conduzido por pesquisadoras brasileiras, analisa as experiências de gestação de homens transexuais, destacando a necessidade de adaptar os serviços de saúde para atender melhor às especificidades desse grupo, frequentemente marginalizado nos protocolos tradicionais de pré-natal e parto. Realizada por meio de uma revisão de literatura, a pesquisa justifica-se pela lacuna de conhecimento sobre o tema e pela prevalência de práticas cis heteronormativas na saúde, que comprometem a qualidade do atendimento médico oferecido a esses homens. Através da publicação, as autoras esperam contribuir para estratégias de acolhimento mais inclusivas no âmbito da saúde.

O artigo mencionado, intitulado Homens transexuais e gestação: uma revisão integrativa da literatura, foi escrito por Gislaine Correia Silva e colegas (2024) e compõe uma edição especial do periódico Ciência & Saúde Coletiva sobre homoparentalidade. Este é um termo recente para os estudiosos brasileiros, que foi criado, porém, nos idos anos 1997, na França, pela Associação de Pais Gays e Lésbicas, para se referir às famílias integradas por pelo menos um adulto que se identifica como homossexual e atua na criação de um ou mais filhos. A multiplicidade de textos e de visões, no entanto, abarca todos os autores que escrevem nesta edição, sendo eles de várias partes do país e do mundo (Gomes et al., 2024).

Homens transexuais são pessoas que se identificam como homens, embora tenham lhes sido atribuído o sexo feminino ao nascer, em decorrência da aparência de seus órgãos genitais. Hoje, as teorias de gênero nos mostram que o gênero é constituído num processo de construção de identidade singular e apresenta diversas possibilidades que não se restringem ao momento do nascimento. Os indivíduos podem se expressar com características atribuídas socialmente ao gênero com que nasceram, mas podem ter outras formas de se manifestar e, inclusive, de se utilizar de diversos meios de afirmação como a utilização de roupas e acessórios que reforcem as características que lhes caem bem, assim como usar fármacos para acentuar determinadas distinções ou fazer cirurgias de redesignação sexual. 

Essa realidade atual é uma conquista da sociedade, que vem sendo acompanhada de aceitação pessoal, familiar, comunitária, social e jurídica. É importante ressaltar que tal diversidade sempre existiu, porém, ficava travada pela repressão da hegemonia heteronormativa baseada em crenças e conceitos morais arcaicos.

Ao longo da revisão, são ressaltados alguns temas que se repetem na maioria dos artigos de pesquisa publicados na edição temática: os serviços de saúde em todos os países, incluindo o Brasil, são hegemonicamente cis heteronormativos e propiciam experiências negativas para o pré-natal e o parto de homens transexuais. Por apresentarem necessidades singulares e pouco usuais na rotina de atenção ao ciclo gravídico-puerperal, esses homens passam por problemas de acolhimento, de compreensão de sua situação e, quase sempre, acabam precisando receber cuidados à sua saúde mental. O artigo cita algumas experiências positivas no atendimento dos serviços, embora sejam poucas. 

Dentre os pontos mais fundamentais ressaltados pelos autores da revisão está a recomendação de serem adotadas estratégias de qualificação profissional com vistas aos cuidados perinatais inclusivos e respeitosos para com esse segmento populacional e de serem readaptados o ambiente e os equipamentos de saúde para torná-los acolhedores também para esse grupo. No artigo, as várias possibilidades indicadas internacionalmente para que os serviços de saúde se tornem mais compreensivos e integradores são apresentadas em uma tabela (ver tabela 1). 

Apesar dos autores da revisão referirem que não encontraram na literatura científica brasileira artigos que pudessem compor sua base de dados, seu próprio texto cita pelo menos três (Monteiro, 2021; Pereira et al., 2022; Pfeil et al., 2023), além de dois documentos do Ministério da Saúde (2013; 2022), o primeiro conceitual e de orientação para os profissionais do setor; e o segundo, sobre modificações a serem incluídas no sistema de notificação de nascidos vivos.

 Além dos citados estudiosos, na problematização do conceito de homoparentalidade, Gomes e colaboradores apresentam vários outros pesquisadores, dentre os quais, Zambrano (2006); Cecílio et al. (2013); Santos et al. (2013); Ribeiro et al. (2015); Mata et al. (2020); Ferreira et al. (2022); Santos et al. (2022) e Gomes (2023).

Conclui-se que, adicionando ao acervo os 20 artigos que compõem a edição temática da Ciência & Saúde Coletiva, o tema da homoparentalidade, incluindo o dos homens transexuais em estado de gestação, está em pleno desenvolvimento teórico e de aplicação no setor da saúde, intensificando-se no século XXI, especialmente a partir do ano 2020.

Recomendações para Cuidados Inclusivos nos Serviços de Saúde
Ambiência
  • Garantir que os banheiros sejam acessíveis a todos os gêneros.
  • Substituir equipamentos e artes binárias rosa e azul por outras cores.
Comunicação
  • Utilizar linguagem neutra em termos de gênero para espaços de saúde (“centro de saúde sexual e reprodutiva” versus “centro de saúde da mulher”).
  • Utilizar linguagem neutra e acolhedora para todas as pessoas nos materiais de educação, literatura e publicidade.
  • Substituir nos cartões da criança “É um menino/menina” por cartões mais inclusivos (por exemplo, “Olá, meu nome é…”).
Educação permanente
  • Garantir que toda a equipe esteja segura para utilizar de forma correta e consistente os nomes sociais, quando indicados, nos atendimentos e registros do serviço de saúde.
  • Oferecer treinamento para aumentar a sensibilidade ambiental, equidade e inclusão de pessoas de todos os sexos e gêneros entre toda a equipe.
  • Considerar como os nomes das pessoas são usados, documentados e comunicados entre os membros da equipe de atendimento.
  • Como o telefone é atendido? A equipe deverá estar atenta para não inferir sobre o gênero da pessoa interlocutora de acordo com as características da voz.
  • Treinar médicos ultrassonografistas quanto à diferença entre os sexos de linguagem neutra durante exames de ultrassom para usuários e fetos.
Registros em prontuários e agendamentos
  • Questionar sobre orientação sexual e identidade de gênero, pronomes e preferências.
  • Providenciar medidas para que agendamentos e cobrança de procedimentos e consultas não dificultem o acesso de pessoas do gênero masculino nos serviços de ginecologia e obstetrícia.
Recomendações para encontros clínicos
  • Ter abertura para a experiência e aprendizado de seus clientes quando eles quiserem compartilhar.
  • Buscar conhecimentos e atualizações sobre a abordagem inclusiva em saúde.
  • Perguntar ao cliente e acompanhante seus pronomes e usá-los de forma consistente.
  • Explicar por que perguntas delicadas são relevantes.
  • Certifique-se de que perguntas delicadas sejam clinicamente significativas e não motivadas por curiosidade ociosa.
  • Consultar a criança com pronomes neutros de gênero, a menos que solicitado a não fazer.
  • Referir-se ao pai biológico como “pai biológico” ou “pai gestacional”.
  • Referir-se ao parceiro do pai biológico como “parceiro” ou “parceira”, ao invés de “pai” ou “co-mãe”.
  • Perguntar os nomes preferidos do usuário para as partes do corpo (por exemplo, tórax, canal de parto, abertura do parto, orifício frontal, mamar no peito etc.).
  • Utilizar pronomes corretos durante o trabalho de parto (por exemplo, referindo-se à “frequência cardíaca paterna” em vez de “frequência cardíaca materna”).
  • Oferecer suporte para alimentação informada de recém-nascidos, incluindo opções para aleitamento humano e alimentação com fórmula.
  • Discutir as opções de contracepção usando a tomada de decisão compartilhada.
  • Discutir sobre o desejo de reiniciar a terapia hormonal, de forma coordenada com o plano de aleitamento humano.
  • Não assumir desejos reprodutivos com base na orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero, sexo atribuído no nascimento ou configuração familiar.
  • Ao discutir a terapia hormonal, considerar os efeitos de medicamentos na fertilidade; desejos de fertilidade atuais e futuros antes de iniciar hormônios de afirmação de gênero ou medicamentos supressores da puberdade.
  • Questionar experiências com os serviços de saúde e oferecer encaminhamentos para equipe multiprofissional e/ou Redes de Atenção à Saúde, se necessário.
  • Fornecer informações sobre grupos de apoio trans e recursos de saúde mental.
  • Evitar exposição desnecessária e indesejada do corpo durante procedimentos e exames, e oferecer panos ou coberturas para o conforto.
  • Explicar claramente todos os procedimentos, passos e intervenções, e verificar o consentimento informado.
Fonte: artigo.

Tabela 1. Recomendações para cuidados inclusivos nos serviços de saúde.

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise Epidemiológica e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. Declaração de Nascido Vivo: manual de instruções para preenchimento. Brasília: Ministério da Saúde, 2022. 

CECÍLIO, M.S., SCORSOLINI-COMIM, F. and SANTOS, M.A. Produção científica sobre adoção por casais homossexuais no contexto brasileiro. Estudos Psicológicos [online]. 2013, vol. 18, vol. 3, pp. 507-516 [viewed 14 May 2024]. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2013000300011. Available from: https://www.scielo.br/j/epsic/a/jcrQ3qhNTNF8NNbyh3F6HQN/ 

FERREIRA, B.O. and NASCIMENTO, M. A construção de políticas de saúde para as populações LGBT no Brasil: perspectivas históricas e desafios contemporâneos. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2022, vol. 27, pp. 3825-3834 [viewed 14 May 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-812320222710.06422022. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/kKYtxMMmQnCrCSvfbrMnkDc/ 

GOMES, R., et al. A homoparentalidade como questão da saúde coletiva: uma revisão de escopo. Revista de Saúde Pública [online]. 2023, vol. 57, pp. 80 [viewed 14 May 2024]. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2023057005447. Available from: https://www.scielo.br/j/rsp/a/vPkxCXXJ7CD3tZX8d3NBgzS/   

GOMES, R., et al.  Problematizando as relações entre homoparentalidade e saúdeCiência & Saúde Coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 4, e18412023 [viewed 14 May 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-81232024294.18412023. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/rXFYg6WNDhMKvcPWTBnMzPF/

MATA, J.J., SANTOS, M.A. and SCORSOLINI-COMIN, F. Conjugalidade e parentalidade em casais homossexuais e heterossexuais: revisão integrativa da literatura. Pensando Famílias [online]. 2020, vol. 24, no. 2, pp. 32-45 [viewed 14 May 2024]. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2020000200004 

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PEREIRA, D.M.R., et al. Evidência Científicas Sobre Experiências de Homens Transexuais Grávidos. Texto & Contexto-Enfermagem [online]. 2022, vol. 3, e20210347 [viewed 14 May 2024]. https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2021-0347pt. Available from: https://www.scielo.br/j/tce/a/kYDSDrrn6mK4mpyx85xWCBw/ 

PFEIL, C.L., et al. Gravidez, Aborto Parentalidade nas Transmasculinidades. REBEH [online]. 2023, vol. 6, no. 19, pp. 7-31 [viewed 14 May 2024]. Available from: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/article/view/15503  

RIBEIRO, C.R., GOMES, R. and MOREIRA, M.C.N. A paternidade e a parentalidade como questões de saúde frente aos rearranjos de gênero. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2015, vol. 20, no. 11, pp. 3589-3598 [viewed 14 May 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-812320152011.19252014. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/qxzxVJzfT4j4hPn9LfX7yGc/  

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ZAMBRANO, E. Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horizontes Antropológicos [online]. 2006, vol. 12, no. 26, pp. 123-147 [viewed 14 May 2024]. https://doi.org/10.1590/S0104-71832006000200006. Available from: https://www.scielo.br/j/ha/a/tBBwkgGRBqtVGmJV7zFMXLK/ 

Para ler o artigo, acesse

SILVA, G.C., PUCCIA, M.I.R. and BARROS, M.N.S. Homens transexuais e gestação: uma revisão integrativa da literatura. Ciênc saúde coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 4, e19612023 [viewed 14 May 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-81232024294.19612023. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/nhpgdmm7yPtKQzFfJJbPxZH/ 

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Para ler a edição temática completa acesse: https://www.scielo.br/j/csc/i/2024.v29n4/

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

GUALHANO, L. and MINAYO, M.C.S. Gestação de homens transexuais precisa de maior atenção dos serviços de saúde [online]. SciELO em Perspectiva | Press Releases, 2024 [viewed ]. Available from: https://pressreleases.scielo.org/blog/2024/05/14/gestacao-de-homens-transexuais-precisa-de-maior-atencao-dos-servicos-de-saude/

 

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