Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe, Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Luiza Gualhano, Editora assistente, Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
A Ciência & Saúde Coletiva encerrou o ano de 2024 com a edição temática vol. 29, no. 12 composta por 27 artigos sobre as condições e as situações de saúde dos povos indígenas brasileiros e os serviços que os incluem no SUS. Os textos têm, como premissa, seus direitos consagrados na Constituição Cidadã de 1988 e mostram como se abriram caminhos para a concretização de suas aspirações. Embora com toda a incompletude dos processos de reconhecimento, acabou-se o tempo da população tutelada.
Mesmo com muitas controvérsias institucionais (Cardoso, et al, 2015), foi possível desenvolver um subsistema público diferenciado para atendê-la e para servi-la como destacado nos artigos Rios de conhecimentos: demarcando a ciência com as vozes indígenas e I Fórum de Saúde Indígena: construção e capilarização da Agenda da Saúde Indígena nos anos de 1990 de Almeida e Abrunhosa, respectivamente.
Exemplo dos avanços incrementais são as questões definidas há mais de 20 anos pela Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI, 2002). O artigo Implementação da Política de Saúde Indígena: uma análise etnográfica das práticas assistenciais no Alto Rio Solimões, escrito por Cerri e Garnelo na Ciência & Saúde Coletiva (vol. 29, no. 12, 2024), apresenta um caso emblemático que mapeia e faz uma avaliação crítica da implementação da PNASPI no maior território indígena do país.
As autoras utilizaram o método etnográfico para embasar sua avaliação, ouvindo diversos atores desse processo e descreveram a complexa interconexão entre as práticas e a realidade contextual e cotidiana. O artigo indica que o efeito mais positivo da Política foi o incremento na contratação de profissionais de saúde para atuarem em área indígena, o que facilitou o acesso aos serviços.
As categorias que emergiram do estudo e que perpassam o modo de prestação dos serviços são resumidas em três: hegemonia do modelo médico-assistencial, presença do modelo sanitarista tradicional e cultura do desempenho. Há muita pouca atenção à questão cultural e à sabedoria milenar das diferentes etnias, seus usos, costumes, crenças e modo de vida.
Também é relatado que a atenção à saúde nas aldeias do Alto Solimões é realizada por Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena vinculadas a um Polo Básico compostas por quatro médicos, 11 enfermeiros, quatro odontólogos, um psicólogo, um farmacêutico, um nutricionista, quatro técnicos de laboratório, 20 técnicos de enfermagem, dois técnicos de saúde bucal, dois auxiliares de saúde bucal, 55 agentes indígenas de saúde e quatro agentes indígenas de saneamento.
O Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Solimões está localizado no oeste do Estado do Amazonas, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Sua gerência é realizada por 14 profissionais, sendo oito da área de enfermagem.
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Imagem: Fiocruz Imagens
O estudo identificou, na prestação de serviços aos indígenas, atividades formais e informais, classificadas nos três modelos já citados e que se complementam:
- No médico-assistencial predomina, como se, de forma neutra, servisse em qualquer circunstância, cultura e lugar. Enquanto tecnologia de trabalho, essa atenção programática, no entanto, tem o potencial de organizar a oferta de cuidados e está alinhada com as prioridades epidemiológicas do território (Teixeira et al, 2006).
- O sanitário preventivista também está vigente e centrado em tecnologias para debelar diferentes agravos e patologias sob as teorias de risco vigentes (Arouca, 2003).
- Por fim, a cultura do desempenho, fenômeno mais recente que se institucionalizou no SUS, engloba técnicas, métodos e ferramentas para monitorar e quantificar o que é realizado por cada profissional e pelo Polo (Ball, 2005).
A responsabilidade moral frente a um evento de gravidade ou em temas que precisam de acompanhamento constante distingue os profissionais que mais interagem com as pessoas e suas necessidades, em relação aos que se guiam pelo instrumentalismo desengajado (Mendonça, et al., 2019). Contudo, por operarem no silêncio institucional, os que vão além do trabalho prescrito atuam por sua conta, sem regulamentação, sem reconhecimento e aumentam sua carga de trabalho.
A PNASPI, formulada num ambiente que aspirava por transformações, foi influenciada pelas ideias que nortearam a Reforma Sanitária. O texto que a materializa não surgiu do nada: carrega consigo uma história e não é introduzido num vácuo social e institucional: passa pelas injuções de quem formula e de quem reinterpreta na prática ou na gestão.
Assim, algumas ideias ultrapassadas ou reducionistas que se materializam em atos prejudicam o impacto do SUS. Isso é tão mais verdadeiro no caso dos povos indígenas, em que a implementação precisa estar integrada à alma da Política e ao modo de vida tradicional. A complexidade e a dinâmica da saúde dos indígenas requerem estratégias capazes de otimizar resultados que reconheçam os direitos deles, escutem suas vozes, conversem com seus conhecimentos tradicionais e os incluam em todos os processos que lhes dizem respeito.
Para ler o artigo, acesse
CERRI, A.R. and GARNELO, L. Implementação da Política de Saúde Indígena: uma análise etnográfica das práticas assistenciais no Alto Rio Solimões. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 12, e08202024 [viewed 14 February 2025]. https://doi.org/10.1590/1413-812320242912.08202024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/8WzJyMgLx7wW6Yd9VdbvbHg
Para ler a edição temática completa acesse
Ciência & Saúde Coletiva, vol. 29, no. 12, 2024
Referências
ABRUNHOSA, A.M., et al. I Fórum de Saúde Indígena: construção e capilarização da Agenda da Saúde Indígena nos anos de 1990. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 12, e07012024 [viewed 14 February 2025]. https://doi.org/10.1590/1413-812320242912.07012024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/kjNzsgs4nF8MjDb59V8jjtM/
ALMEIDA, H.D. Rios de conhecimentos: demarcando a ciência com as vozes indígenas. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 12, e06742024 [viewed 14 February 2025]. https://doi.org/10.1590/1413-812320242912.06742024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/mk49y37VGSNznb8t6FxCyTh/
AROUCA, S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São Paulo: Unesp, 2004
BALL, S. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa [online]. 2005, vol. 5, no. 126, pp. 539-564 [viewed 14 February 2025]. https://doi.org/10.1590/S0100-15742005000300002. Available from: https://www.scielo.br/j/cp/a/sHk4rDpr4CQ7gb3XhR4mDwL/
CARDOSO, M.D. Políticas de saúde indígena no Brasil: do modelo assistencial à representação política. In: LANGDON, E.J. and CARDOSO, M.D. Saúde indígena: políticas comparadas na América Latina. Florianópolis: Editora da UFSC, 2017
MENDONÇA, M.B.S., RODRIGUES, D. and PEREIRA, G.P.P. Modelo de atenção à saúde indígena: o caso do DSEI Xingu. Cadernos de Saúde Pública [online]. 2019, vol. 35, no. 3, e00008119 [viewed 14 February 2025]. https://doi.org/10.1590/0102-311X00008119. Available from: https://www.scielo.br/j/csp/a/3cHVRqwtP7mWCDgFDsDkZth/
Portaria Ministério da Saúde, nº 254 de 31 de janeiro de 2002 [online]. Fiocruz. 2002 [viewed 14 February 2025]. Available from: https://repositorio.bvspovosindigenas.fiocruz.br/items/679ef1d2-eecc-4523-99ea-ae1bc7688087
TEIXEIRA, F.C. and SOLLA, P.J. Modelo de atenção à saúde: promoção, vigilância e saúde da família. Salvador: Edufba, 2006
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