Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe, Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Luiza Gualhano, Editora assistente, Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Em agosto de 2024, a Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados do Brasil aprovou, em regime de urgência, o projeto de lei (PL 1904/2024) que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio. Esse ato legislativo se consumado, provocará um retrocesso imenso no país em relação aos direitos reprodutivos, tornando-o a lei mais arcaica e impiedosa do que o Código Penal de 1940, que concedia às vítimas de estupro e às mães em perigo de morte por causa da gravidez, o direito de abortar. A essas duas circunstâncias, o Supremo Tribunal Federal acrescentou o mesmo direito às gestantes com diagnóstico de ter em seu ventre um bebê anencefálico.
Caso a referida PL seja aprovada, mesmo o aborto antes considerado legal será proibido e as mulheres com ele envolvidas, poderão ser sentenciadas com pena que varia de 6 e 20 anos de prisão. Pena maior do que os 10 anos previstos para o estuprador.
Este preâmbulo é necessário para introduzir o importante artigo Início oportuno do pré-natal de adolescentes vítimas de violência sexual: implicações para o aborto legal no Brasil escrito por Silva, et al. , publicado na primeira edição da Ciência & Saúde Coletiva de 2025, tendo como um dos autores referenciais Cesar Victora, premiado epidemiologista brasileiro e membro do Conselho de Política Editorial da Revista.
Com dados de 2020 a 2022 do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos do Ministério da Saúde (SINASC, os autores relacionaram e analisaram a situação das grávidas que realizaram pré-natal no período, tal como preconizado pelo SUS (Sistema Único de Saúde), levando em conta idade, região de origem, raça/cor e escolaridade.
No período, houve 11.607 partos anuais resultantes de estupro de vulnerável. Enquanto o pré-natal no tempo devido foi realizado por 70,2% das gestantes adolescentes (população abaixo de 20 anos), apenas 55,6% das crianças grávidas com 13 anos ou menos foram atendidas pelo SUS. Das que receberam cuidados, 14,1% iniciaram o pré-natal com 22 semanas ou mais de gestação, sendo 28,3% com 13 anos ou menos.
A situação foi mais dramática na Região Norte, vivenciada por meninas e adolescentes indígenas, pobres e com baixa escolaridade que foram estupradas. As informações do artigo corroboram dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), segundo o qual 74.930 pessoas foram estupradas no Brasil em 2022. Dessas, 88,7% eram do sexo feminino e 60% tinham no máximo 13 anos de idade.
Característica | ≤ 12 anos | 13 anos | 14 anos | 15 anos | 16 anos | 17 anos | 18 anos | 19 anos | Total (<20 anos) | ≥ 20 anos |
Região de residência | ||||||||||
Norte | 28,1% | 25,1% | 21,8% | 20,2% | 19,1% | 18,1% | 17,0% | 15,7% | 17,6% | 10,3% |
Nordeste | 38,9% | 39,6% | 38,8% | 37,5% | 36,0% | 34,7% | 33,6% | 31,7% | 34,2% | 27,3% |
Sudeste | 17,6% | 20,4% | 23,7% | 25,8% | 27,3% | 29,0% | 30,4% | 32,4% | 30,0% | 39,5% |
Sul | 5,9% | 6,4% | 7,9% | 8,5% | 9,4% | 9,9% | 10,6% | 11,6% | 10,3% | 14,3% |
Centro-Oeste | 9,5% | 8,5% | 7,8% | 8,0% | 8,2% | 8,3% | 8,5% | 8,6% | 8,4% | 8,6% |
Raça/cor da pele | ||||||||||
Branca | 14,8% | 14,8% | 17,3% | 18,7% | 20,4% | 21,5% | 22,8% | 24,8% | 22,2% | 35,7% |
Preta | 4,9% | 5,0% | 5,4% | 5,8% | 5,9% | 6,4% | 6,7% | 6,9% | 6,5% | 7,1% |
Parda | 66,8% | 72,6% | 72,4% | 72,0% | 70,7% | 69,5% | 68,2% | 66,3% | 68,8% | 55,8% |
Indígena | 13,5% | 7,2% | 4,6% | 3,2% | 2,6% | 2,2% | 1,8% | 1,6% | 2,2% | 0,9% |
Escolaridade | ||||||||||
Menos de 4 anos | 6,7% | 4,7% | 2,8% | 2,0% | 1,7% | 1,4% | 1,3% | 1,2% | 1,5% | 1,7% |
4 a 7 anos | 70,7%* | 63,5%* | 48,0% | 35,1% | 25,8% | 20,2% | 16,5% | 14,3% | 21,1% | 11,0% |
8 anos ou mais | 22,6%* | 31,8%* | 49,2%* | 62,9% | 72,5% | 78,4% | 82,2% | 84,5% | 77,4% | 87,3% |
Número absoluto | 1.958 | 9.793 | 37.576 | 89.513 | 148.702 | 203.625 | 256.458 | 314.342 | 1.061.967 | 6.596.529 |
Tabela 1. Características das parturientes adolescentes por idade em anos completos e total e de parturientes com 20 anos ou mais, segundo variáveis sociodemográficas. SINASC, 2020-2022.
Esses dados ressaltados por vários autores (Santos, 2014; Malta, et al., 2024; Pinto, et al., 2024); gritam contra o PL 1904/2004, pois é fato comprovado que, quanto mais baixa a idade e escolaridade, mais difícil é o reconhecimento da gravidez pelas próprias vítimas de estupro. A demora nesses casos contribui para o início tardio do pré-natal e para a decisão de abortar.
A verdade com a qual precisam se confrontar os autores e apoiadores do PL 1904/2024 – que, espera-se, não saia do papel, pois atenta contra a sensatez dos parlamentares – é que as principais vítimas de sua crueldade são as meninas mais vulneráveis, em idade e condições adversas de pobreza e raça.
Para ler o artigo, acesse
SILVA, S.E.L., et al. Início oportuno do pré-natal em adolescentes vítimas de violência sexual: implicações para o aborto legal no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2025, vol. 30, no. 1, e18682024 [viewed 25 February 2025]. https://doi.org/10.1590/1413-81232025301.18682024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/6n8r3HxCGFBFZZWLPzY9Qqc/
Para ler a edição temática completa, acesse
Ciência & Saúde Coletiva, vol. 30, no. 1, 2025
Referências
MALTA, C.D. and MINAYO, S.C.M. Criança não é mãe!. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 9, e07682024 [viewed 25 February 2025]. https://doi.org/10.1590/1413-81232024299.07682024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/nPJRsxpMWG5b68jpG9NYQsv/
PINTO, V.I., et al. Gravidez em meninas menores de 14 anos: análise espacial no Brasil, 2011 a 2021. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 9, e10582024 [viewed 25 February 2025]. https://doi.org/10.1590/1413-81232024299.10582024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/J3v5kbXBypd3KQDg4nCqyrH/
Projeto de lei prevê pena de homicídio simples para aborto após 22 semanas de gestação [online]. Câmara dos Deputados. 2024 [viewed 25 February 2025]. Available from: https://www.camara.leg.br/noticias/1071458-projeto-de-lei-preve-pena-de-homicidio-simples-para-aborto-apos-22-semanas-de-gestacao/
SILVA, S.E.L., et al. Início oportuno do pré-natal em adolescentes vítimas de violência sexual: implicações para o aborto legal no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2025, vol. 30, no. 1, e18682024 [viewed 25 February 2025]. https://doi.org/10.1590/1413-81232025301.18682024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/6n8r3HxCGFBFZZWLPzY9Qqc/
SANTOS, C.A.L.N., et al. Gravidez na adolescência: análise de fatores de risco para baixo peso, prematuridade e cesariana. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2014, vol. 19, no. 3, pp. 26-719 [viewed 25 February 2025]. https://doi.org/10.1590/1413-81232014193.18352013. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/gBmNMnrVBmqpjV9GBNqGx5r/
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