Relação da saúde com a violência armada e o comércio de drogas ilícitas

Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe, Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Luiza Gualhano, Editora assistente, Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Logo do periódico Ciência & Saúde ColetivaNa edição temática do periódico Ciência & Saúde Coletiva destaca-se o artigo Violência armada e comércio de drogas ilícitas. Uma revisão integrativa de literatura sobre o Brasil (vol. 30, no. 4, 2025), de Mayalu Matos Silva e Patrícia Constantino, que trata do escalamento da violência armada, associada ao comércio de drogas ilícitas no Brasil.

Em 2021, o país ocupou o 11º lugar nos homicídios por essa dupla causa. O fenômeno que aqui se discute é a tomada de territórios civis, à revelia dos governos locais, por grupos armados que se apossam deles, juntando o lucro por transações de drogas e de outras mercadorias ilícitas, a cobranças de taxas de água, luz e gás dos moradores, construção ilegal de moradias e, sobretudo, uso de armamentos, de uso exclusivo das polícias ou das forças armadas (Wallensteen and Sollenberg, 2001).

Esse fenômeno está hoje espalhado por vários estados do Brasil e por vários países da América Latina, em que a violência armada é exercida tanto por membros de gangues como por seguranças e milícias privadas, e onde houve um aumento expressivo da posse e o uso de armas pela população civil (OCDE, 2014).

Essa região é considerada uma das mais afetadas pelo crime organizado, ostentando a maior taxa de homicídios intencionais do mundo: 19.91 por100.000 habitantes em 2021, enquanto a taxa global no mesmo período foi de 5.79 por 100.000 habitantes. A América Latina é também a maior produtora e comercializadora de cocaína, droga super lucrativa. O Brasil não a produz, mas é rota de comércio para a Europa e outros locais (Polet, 2013).

A pergunta que surge é: por que essa tragédia foi publicada por uma revista do setor da saúde?

Como resposta, é importante dizer que, desde 1996, a violência foi incluída pela Organização Mundial de Saúde, OMS, (WHO, 1996) na pauta do setor como prioridade. A justificativa é que, no sistema de saúde, desaguam as mortes, lesões, traumas e todo o sofrimento físico e mental gerado por esses problemas de segurança, que geram graves impactos na população e afetam fortemente o funcionamento do sistema em geral e em seus componentes de atendimento local e de ação social (Minayo and Franco, 2018; Silva, 2023).

As autoras ressaltam os principais temas que emergiram de seu estudo: o fácil acesso a armas de fogo; a relação entre a ilegalidade das drogas e a violência; a forma como o Estado lida com esse fenômeno; o domínio territorial alcançado pelos grupos armados; os jovens negros como as principais vítimas e perpetradores dos crimes e os impactos dessa situação sobre a saúde individual e coletiva.

Os altos lucros do comércio de drogas possibilitam e facilitam a aquisição e a presença das armas no ambiente do narcotráfico, que vem se consolidando desde a década de 1980 (Szwarcwald and Castilho, 1988) e arregimentado, sobretudo, jovens das periferias, cujo efeito correlato é o crescente armamento de cidadãos comuns, amedrontados pela insegurança (Ursin, 2014).

A guerra às drogas é um tema fartamente debatido hoje, nacional e internacionalmente, pois a maioria das análises mostra que ela só produziu efeito contrário e passou a dificultar qualquer racionalidade no tratamento da questão. Chegou-se hoje a um ponto em que o domínio dos narcotraficantes ou milicianos nos bairros (particularmente nos mais pobres) usurpou o poder do Estado e o monopólio legítimo da força — e não se vislumbra saída honrosa para essa inversão de competência (Zaluar, 2013; Zaluar and Barcellos, 2007).

Imagem em preto e branco de moldura quebrada com uma fotografia de flores

Imagem: Unsplash

Sobre o poder vilipendiado do Estado, o diagnóstico mais comum é sobre a ausência de uma efetiva segurança pública preventiva em territórios periféricos e de uma ação violenta da polícia nos locais onde se aninham os traficantes, fruto do recrudescimento da militarização e do policiamento ostensivo, requerido pela guerra às drogas (Zaluar, 2013; Zaluar Barcellos, 2007).

Essa estratégia de ação estigmatiza os moradores desses territórios. O que se torna um jogo de soma zero porque os habitantes desses locais passam a classificar a polícia como sendo violenta e corrupta. E na realidade, alguns membros da corporação se deixam corromper, compactuam com o crime e assim, ampliam o sentimento de insegurança da população. Certo é que se constata uma ineficiência do Estado para lidar com o duplo problema aqui tratado, há pelo menos quatro décadas, enquanto se observa o crescimento e o empoderamento das organizações criminosas e milicias.

A respeito da população impactada, é importante dizer que o tipo de violência aqui tratado está desigualmente distribuído pelas cidades e se localiza em determinadas áreas da periferia, que se configuram como territórios de domínio de gangues em disputas ou em conluio com rivais. Elas preferem se fixar perto de grandes vias de circulação, portos, aeroportos e depósitos de armamentos das Forças Armadas. Há, da parte delas, flagrante violação do direito de ir e vir dos moradores que, muitas vezes, perdem a vida por cruzar limites territoriais ou mesmo por morar em determinado endereço e ser identificado como uma facção rival, ainda que a pessoa não tenha envolvimento com a criminalidade.

Essa situação também leva ao impedimento de frequentar espaços de lazer, de usar equipamentos sociais como escolas e postos de saúde, além de levar à expulsão de famílias de suas casas e comunidades, o que, em geral, faz aumentar o contingente dos que vivem em situação de rua.

Os jovens negros costumam ser os principais autores e vítimas dos homicídios nesses locais: são os que mais matam e mais morrem em função dos conflitos violentos. Seu ciclo de vitimização costuma se iniciar no envolvimento com atos infracionais, apreensões pela polícia, passagens por instituições, engajamento no narcotráfico, uso e porte de armamento pesado, assassinatos e morte (Sant’Ana et al, 2005).

Quanto ao impacto produzido na saúde, assinalam-se as perdas precoces de vida, a iminência constante de confronto com a morte, as tentativas e efetivação de suicídios, as lesões e os traumas irreversíveis. É relevante fazer menção às mães e às famílias que lidam com a perda de filhos e parentes, padecendo um sofrimento mental inenarrável, provocado por uma dor que não tem fim.

É preciso conceber a segurança como um valor muito maior do que a força policial — que por si só pode pouco — na construção de uma sociedade de paz e de um SUS dedicado à promoção da vida.

Para ler a edição temática, acesse

Ciência & Saúde Coletiva. vol. 30, no. 4, 2025

Para ler o artigo, acesse

SILVA, M.M. and COSTANTINO, P. Violência armada e comércio de drogas ilícitas. Uma revisão integrativa de literatura sobre o Brasil. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2025, vol. 30, no. 4, e15142023 [viewed 8 May 2025]. https://doi.org/10.1590/1413-81232025304.15142023. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/W36N6ds3VCjt9M9JVqrLm3d/

Referências

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POLET, F. Narcotrafic: Ravages du narcotrafic, naufrage de la “guerre aux drogues”. In: POLET, F. (ed.) Narcotrafic: La “guerre aux drogues” en question. Paris: Centre Tricontinental, 2013

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SILVA, M.M. Controle de substâncias ilícitas e seus impactos em violência e saúde. Estudo de caso no Rio de Janeiro (Brasil) e Lisboa (Portugal). Manguinhos: Ensp/Fiocruz, 2023

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ZALUAR, A. and BARCELLOS, C. Mortes prematuras e conflito armado pelo domínio das favelas no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online]. 2013, vol. 28, no. 81, pp. 17-31 [viewed 8 May 2025]. https://doi.org/10.1590/S0102-69092013000100002. Available from: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/RLG9kX76kKXNnBTjMrTyxDN/

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MINAYO, M.C.S. and GUALHANO, L. Relação da saúde com a violência armada e o comércio de drogas ilícitas [online]. SciELO em Perspectiva | Press Releases, 2025 [viewed ]. Available from: https://pressreleases.scielo.org/blog/2025/05/08/relacao-da-saude-com-a-violencia-armada-e-o-comercio-de-drogas-ilicitas/

 

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