O íntimo e o público na era digital

Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Logo do periódico Ciência & Saúde ColetivaO artigo Vazamento de Nudes: da moralização e violência generificada ao empoderamento, publicado na edição vol. 27, no. 10, da Revista Ciência & Saúde Coletiva, é um dos artigos temáticos do número especial sobre Diversidade e Saúde Coletiva. A pesquisa de Suely Ferreira Deslandes; Claudia Valéria Cardim Silva; Juliana Marins Reeve e Roberta Matassoli Duran Flach sobre a disseminação de conteúdos íntimos sem consentimento pela internet, discorre sobre um tipo de violência que acontece na esfera digital e que causa muito sofrimento e além de outros transtornos de ordem psicológica e comportamental.

As autoras Suely Ferreira Deslandes e Claudia Valéria Cardim Silva respondem à entrevista sobre esse tipo de violência tão atual e impactante.

A partir de quando iniciou a pesquisa sobre violência em ambientes digitais?

O projeto “Internet: espaço de disseminação e de enfrentamento de violência contra crianças e adolescentes” teve início entre 2015 e 2016, tendo como objetivos analisar como algumas formas de violência contra crianças e adolescentes são praticadas e disseminadas na internet, propondo iniciativas de prevenção a essas violências. Esse projeto surge a partir da percepção de que a violência contra crianças e adolescentes passou a se manifestar de forma intensa nas relações mediadas pela tecnologia digital. O grupo de trabalho iniciou os estudos sobre o tema a partir do Cyberbullying e por 2 a 3 anos seguintes, ampliamos os estudos sobre sociabilidade digital, buscando compreender a expansão, significados e representações da cultura digital.

O artigo Vazamento de Nudes: da moralização e violência generificada ao empoderamento trata de um tema muito atual, e que precisa ser abordado. Poderia falar sobre o contexto principal do artigo?

O artigo traz como eixo o debate que cerca o contexto de relações de gênero e de uma dinâmica de sociabilidade e sexualidade contemporânea mediada pela internet, sobretudo das gerações mais jovens, que nasceram na web 2.0, que têm suas relações afetivas sexuais fortemente mediadas, construídas e expressas nos e pelos meios digitais. Esse cenário tem trazido possibilidades amplas de construção das relações amorosas e laços afetivos-sexuais, mas também tem ampliado as possibilidades da ocorrência da violência e abuso digital entre parceiros, especialmente com a disseminação não consentida desses conteúdos íntimos. Esse abuso e violências sofridas se manifesta de forma diferenciada por gênero, onde as meninas sofrem as consequências dessa exposição com ataques misóginos, sexistas e o apartamento do seu grupo social (PAZ e SILVA, 2021).

Por outro lado, os meninos apesar de também sofrerem com essa forma de violência, têm elementos culturais, apoios da sociedade para ressignificação dessa experiência, transformando-a, inclusive, numa experiencia que pode lhes aportar algum ganho. Outro aspecto que foi importante desse estudo foi a questão da corporeidade, a valoração de uma determinada leitura, da construção da imagem corporal consonantes aos padrões estéticos aceitos/valorados por esses jovens que circulam na internet de forma mais ampla e que também passam por um diferencial de gênero. E, da mesma forma, que a ressignificação da experiência da violência pode dar lugar a uma pauta política de diversidade e autonomia a partir do uso do corpo e da nudez.

Qual o perfil das pessoas que cometem esse tipo de violência? Tem semelhança com quem pratica cyberbullying?

Há a possibilidade de quem utiliza a internet para humilhar, perseguir, tenha em comum uma questão, uma marca de violência, de abusos sofrida de alguma forma e/ou presencie e veja como normal e habitual, a banalização desses atos praticados no web espaço, como algo corriqueiro, sem implicações legais ou éticas.

A internet, cada vez mais incorporada à vida das pessoas, tem trazido pouca reflexão quanto aos limites e alcances das fronteiras da privacidade em diferentes níveis. A própria definição entre o que seja intimidade e extimidade mostram tais borramentos. Há uma verdadeira banalização a respeito a essa possibilidade de definir os limites do espaço íntimo/privado, endossada inclusive, por grandes empresas e organizações por exemplo, que disponibilizam aplicativos de vigilância de parceiros nos smartphones ou de plataformas que utilizam suas informações não consentidas e que alimentam a lógica do capital informacional.

Quais os desdobramentos a partir da pesquisa? O que o artigo traz como resultados?

O projeto, além das reflexões acadêmicas, se voltou para a elaboração de produtos de intervenção/prevenção através de três vídeos. O material produzido foi disponibilizado em redes sociais digitais da FIOCRUZ e das instituições parceiras. A estrutura dos vídeos em geral contemplaram uma situação problema, debate e reflexão, além de algumas informações úteis sobre como lidar com a violência abordada. Junto com os vídeos foram também produzidos, materiais em forma de panfletos em cards esclarecendo pais, cuidadores e educadores sobre os temas tratados nos vídeos.

Em relação aos principais resultados, foi possível observar a intensidade do sofrimento e consequências relatadas nas histórias desses adolescentes que tiveram seus nudes vazados através de humilhação, ameaças e perseguição. Apesar de retratarem toda sorte de consequências sofridas, esses também foram elementos apropriados no manejo midiático de um tema que “rende audiência”, que mobiliza, agrega outros jovens com histórias semelhantes, cria empatia e os empodera.

Pode-se destacar que essa forma de violência tem consequências diversas para as meninas e grupos LGBTQIA+, sobretudo meninos gays. Esse grupo, tende a sofrer maior linchamento virtual, menor apoio da rede social, maior isolamento e maior risco de fissura nas suas conexões sociais como escola, família e religião, com danos relatados no campo da saúde mental, incluindo depressão, desejo/atitudes suicidas (Gassó, et al, 2020).

O estudo também revelou essa experiência enquanto espaço de empoderamento para alguns jovens que têm na troca de nudes uma forma da sua liberdade sexual e da existência (política e digital) de seus corpos. Esse lugar de empoderamento também foi apropriado por alguns jovens na perspectiva de orientar outros que sofreram vazamento dos seus nudes sem consentimento a adotarem medidas legais, buscando ajuda e a denunciarem aqueles que cometem essa forma de violência.

Quais ações podem ajudar a prevenir esse tipo de violência?

Estamos falando de uma sociedade que passa grande parte do seu tempo e mobiliza boa parte dos recursos que utiliza na internet sem que tenha sido conduzida a fazer nenhuma reflexão sobre as fronteiras do público e privado no web espaço. Embora estejamos avançando na legislação que rege os usos e direitos civis específicos e ampliados para  esse contexto específico em diferentes segmentos sociais, a partir dos dispositivos legais do inciso X do art. 5º da Constituição (BRASIL, 1988), que torna inviolável a vida privada, do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) que regulamentou o uso da internet no Brasil  (hoje em reformulação), e de outras legislações, inclusive a lei 13.718/2018, que modificou o código penal, onde o vazamento de nudes foi inserido enquanto crime no ordenamento jurídico brasileiro, os espaços e mecanismos que mobilizam os debates sobre os usos da internet merecem maior investimento, visando ao letramento digital da população.

Ainda na direção de se investir no letramento digital, é importante buscar trazer reflexões e esclarecimentos que não façam as vítimas dessa violência se invisibilizarem ao serem caladas, uma vez que há um julgamento coletivo e moralidades que cercam o tema. O caminho do letramento digital, portanto, deve envolver um esforço conjunto de vários meios que alcancem as grandes mídias, as plataformas, os meios digitais, inclusive os conteúdos curriculares. Nesse sentido, apesar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), abordar em seu conteúdo o letramento digital e apontar para a utilização das tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, reflexiva e ética, efetivamente de forma ampla na rede das escolas públicas e privadas no país, ainda há um longo caminho a percorrer rumo à efetiva incorporação desses conteúdos nos currículos e nas práticas pedagógicas nas escolas para maior alcance das crianças e dos jovens.

Referências

GASSÓ, A., MUELLER-JOHNSON, K. and MONTIEL, I. Sexting, online sexual victimization, and psychopathology correlates by sex: depression, anxiety, and global psychopathology. Int J Environ Res Public Health [online]. 2020, vol. 17, no. 3, pp. 1018-1036 [viewed 6 October 2022]. https://doi.org/10.3390%2Fijerph17031018. Available from: https://www.mdpi.com/1660-4601/17/3/1018

PAZ, A.A. and SILVA, S.R. Isso não é pornografia de vingança: violência contra meninas e mulheres a partir da explanação de conteúdo íntimo na internet. Reciis [online]. 2021, vol. 3, no. 15, pp. 561-579 [viewed 6 October 2022]. https://doi.org/10.29397/reciis.v15i3.2315. Available from: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/2315

Para ler o artigo, acesse

DESLANDES, S.F., et al. Vazamento de Nudes: da moralização e violência generificada ao empoderamento. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2022, vol. 27, no. 10, pp. 3959-3968 [viewed 6 October 2022]. https://doi.org/10.1590/1413-812320222710.07112022. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/Fp9zrh6C64Y4DLpx5TdvL8b/

Links externos

Ciência & Saúde Coletiva: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br

Redes Sociais: Facebook | Twitter | Instagram

Ciência & Saúde Coletiva – CSC: http://www.scielo.br/csc

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

GUALHANO, L. O íntimo e o público na era digital [online]. SciELO em Perspectiva | Press Releases, 2022 [viewed ]. Available from: https://pressreleases.scielo.org/blog/2022/10/06/o-intimo-e-o-publico-na-era-digital/

 

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Post Navigation