População em situação de rua no Brasil: visível demais ou totalmente invisível?

Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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Em 2020, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA, 2020) estimou que havia 221.869 pessoas vivendo em situação de rua no Brasil. Segundo dados do IPEA de 2022, essa estimativa passou para 281.472 pessoas. Esse grupo é heterogêneo, mas tem em comum a vivência da extrema pobreza. São pessoas que se sustentam de forma temporária ou permanente em logradouros públicos e áreas degradadas ou em unidades de acolhimento para pernoite temporário ou moradia provisória. A maioria apresenta vínculos familiares interrompidos ou fragilizados.

O estudo de Queiroz et al. (2024) que aqui se apresenta, intitulado Ações de assistência à saúde ofertadas à população em situação de rua: estado da arte, faz uma revisão da literatura sobre como essa população é assistida do ponto de vista da saúde, apresentando algumas conclusões. O texto começa por lembrar que em 2009 foi instituída a Política Nacional para a População em Situação de Rua, por meio do Decreto Presidencial 7.053/2009 (Brasil, 2009), visando garantir a esses brasileiros e brasileiras, acesso amplo e seguro às redes de atenção à saúde, assistência social e moradia.

Por meio de técnicas metodológicas mundialmente reconhecidas de revisão, de 231 artigos que encontraram, Queiroz e colegas selecionaram 21 que abordam as principais questões sobre o tema, nos últimos 10 anos. Cada uma das questões tratadas pelos autores é descrita no artigo, dentre elas: atuação dos equipamentos de atenção primária (em geral ainda muito discriminatória e preconceituosa); importância dos Consultórios de Rua que buscam oferecer prevenção e cuidados; forte presença de uso de drogas, sobretudo de crack; tímida ou insuficiente contribuição dos CAPSad; e forte atuação das comunidades terapêuticas com viés proibicionista e religioso.

De acordo com as autoras: “Na desassistência e ausência de políticas públicas, a população em situação de rua busca apoio em entidades e pessoas ligadas as organizações não governamentais, comunidades e coletivos religiosos, que, na maioria das vezes, têm caráter caritativo, o que obscurece o direito à saúde” (Queiroz et al., 2024).

A maioria dos estudos destaca as experiências dos Consultórios de Rua espalhados pelo Brasil, por sua importância em promover acessibilidade aos serviços e serem resolutivos como porta de entrada à rede de atenção. Esses equipamentos funcionam de forma multiprofissional e interdisciplinar, e parecem ser a proposta mais bem formulada que existe até o momento.

No entanto, eles encontram barreiras nos encaminhamentos para os vários níveis de atenção, seja por desarticulação entre os serviços, seja por desconhecimento da Política que inclui essa população no SUS. Um dos artigos cita especificamente a desarticulação da rede de atenção psicossocial, dizendo que ela tem linhas desconectas, fluxos mal definidos e serviços que mal se conhecem, e se ancoram na psiquiatrização e na lógica manicomial (Paiva et al., 2022).

Um ponto digno de nota, assinalado por vários autores, é a presença da polícia como uma forma de higienização dos espaços públicos onde se aloca a população de rua. A relação entre a polícia e a assistência social se retroalimenta com o estabelecimento e a manutenção de estigmas (Egstrom et al., 2016). O tema da moradia é pouco tocado no artigo, sendo possivelmente o mais problemático, por questões da própria população, mas também da administração pública.

O artigo de Queiroz e colegas (2024) é longo, complexo e merece ser lido na íntegra, entre outros motivos, por tratar de um dos segmentos sociais mais frágeis, que incomoda muito a sociedade e é pouco conhecido em sua complexidade e em suas necessidades. A população em situação de rua faz parte de nossa história e é composta por nossos irmãos e irmãs que frequentemente queremos tornar invisíveis, sendo fruto dos duros problemas sociais do país.

Referências

BRASIL. Decreto n. 7.053 de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências [online]. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm.

ENGSTROM, E.M. and TEIXEIRA, M.B. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2016, vol. 21, no. 6, pp. 1839-1848 [viewed 16 September 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-81232015216.0782016. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/P93ybrPWRqCHtFHh4T7JkxB/

FRIEDRICH, M.A., et al. Barreiras de acesso à saúde pelos usuários de drogas do consultório na rua. Journal of Nursing and Health [online].  2019, vol. 9, no. 2, pp. 1-15 [viewed 16 September 2024]. https://doi.org/10.15210/jonah.v9i2.13443. Available from: https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/enfermagem/article/view/13443

IPEA – INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS APLICADAS. Estimativa da população em situação de rua no Brasil [online]. Diretoria de Estudos de Políticas Sociais. 2020, vol. 73, pp. 7-13 [viewed 16 September 2024]. Available from: https://portalantigo.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200612_nt_disoc_n_73.pdf

IPEA – INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS APLICADAS. Estimativa da população em situação de rua no Brasil (2012-2022) [online]. Diretoria de Estudos de Políticas Sociais. 2022 [viewed 16 September 2024]. Available from: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11604/1/NT_Estimativa_da_Populacao_Publicacao_Preliminar.pdf

PAIVA, I.K.S. and GUIMARÃES, J. População em situação de rua e Rede de Atenção Psicossocial: na corda bamba do cuidado. Physis [online]. 2022, vol. 32, no. 4, e320408 [viewed 16 September 2024]. https://doi.org/10.1590/S0103-73312022320408. Available from: https://www.scielo.br/j/physis/a/TxqHGs9XCcxKxzXBvnyRmzb/

Para ler o artigo, acesse

QUEIROZ, D.C.; VERAS, R.M.; MENEZES, A.E.G.S. Ações de assistência à saúde ofertadas à população em situação de rua: estado da arte. Ciênc saúde coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 8, e05482024 [viewed 16 September 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-81232024298.05482024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/mW7cPwHQcKyrMVjpfH39JWH/

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Para ler a edição temática completa acesse: https://www.scielo.br/j/csc/i/2024.v29n8/

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

GUALHANO, L. and MINAYO, M.C.S. População em situação de rua no Brasil: visível demais ou totalmente invisível? [online]. SciELO em Perspectiva | Press Releases, 2024 [viewed ]. Available from: https://pressreleases.scielo.org/blog/2024/09/16/populacao-em-situacao-de-rua-no-brasil-visivel-demais-ou-totalmente-invisivel/

 

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