Por Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe e Luiza Gualhano, Editora assistente, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
O tema da edição de outubro de 2020 da Ciência & Saúde Coletiva (vol. 25, no 10) são as pessoas e grupos marcados pela invisibilidade e pela desigualdade social e em saúde. O artigo “Desvelando a cultura, o estigma e a droga enquanto estilo de vida na vivência de pessoas em situação de rua” (Silva et al, 2020) é uma etnografia escrita por cinco enfermeiras e um antropólogo de Porto Alegre que acompanharam, por dois anos, a população de rua da cidade.
De início, chama atenção o fato de que a população de rua, geralmente vista como um amontoado de gente que aguça uma visibilidade indesejável e clama por “limpeza social”, quando vista por meio dos indivíduos que a compõem é formada por pessoas invisíveis, anônimas, consideradas sujas, que causam repulsa e medo (Wijk et al, 2019; Becker 2008; Elias, 2000; Goffman, 2015).
É nesse universo proscrito que Silva et al (2020) imergiram por dois anos e identificaram uma cultura específica, em que a droga aparece enquanto estilo de vida coletivo, instrumento de organização, de formação de identidade, resistência aos estigmas e à exclusão.
Os autores ressaltam que o grupo estudado é heterogêneo (homens e mulheres de várias idades, crianças, guardadores de carro, descarregadores de carga, catadores de papel ou latinhas, entre outros) tendo em comum a pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e inexistência de moradia convencional regular. Observam também que, além de lugar de moradia, a rua é um território de afeto e proteção grupal para superação das dificuldades de viver com poucos recursos. Por isso, esse espaço tem suas próprias regras, normas, códigos, lógicas e razões.
“Quando você desvia o olhar de uma pessoa sem-teto, você diminui a humanidade dela e a sua.” (Brené Brown)
É aí que entra a droga (principalmente crack, maconha e álcool) enquanto experiência individual e coletiva, como parte das redes de comunicação, de compartilhamento, relações e afetos dos moradores de rua. Por isso, os autores consideram que seu modo de uso constitui uma cultura e um estilo de vida (Silva et al, 2020), e não deve ser considerado apenas através dos efeitos das substâncias no organismo, ou do prazer e da dependência que elas causam.
Sua serventia para a maioria formada por homens, grande parte em idade produtiva (25 a 44 anos) (Brasil, 2008), precisa ser entendida muito além das aparências: como um combustível da sobrevivência às vulnerabilidades, à perda dos laços familiares, à falta de oportunidades no mercado de trabalho, ao descaso e omissão das políticas sociais e de emprego.
No artigo, os autores interpretam o uso de drogas no contexto da rua como um artifício de vida (uma vida de trabalho intermitente, desvalorizado, de fome, de dias frios, sem banho, discriminado) e de inclusão coletiva. Nesse sentido, o cuidado com as pessoas em situação de rua deve ser pensado de forma muito diferente do habitual.
A retirada da droga, sem uma solução para os problemas individuais e coletivos, poderia significar a morte, uma vez que ela possui um valor social, cultural e simbólico que demarca a sobrevivência. Por incrível que pareça, a população de rua discrimina os que não usam droga, porque estão fora da cultura e do estilo de vida “da tribo”.
É preciso ficar claro que aqui não se defende nem a vida na rua nem o uso de drogas legais ou ilegais. Mas, faz-se um exercício de compreensão sobre um seguimento social, humano como nós, que vive perto ou longe de nossos olhos, num universo de miserabilidade, de abandono e de dificuldades, tendo o uso de drogas como um dos principais refrigérios.
Aos profissionais de saúde, tão afeitos a prescrições, ao conceito de risco e de prevenção é importante lembrar que muita coisa foge a esse radar, porque a vida transborda para todos os lados, e viceja onde menos esperamos.
Referências
BECKER, H.S. Outsiders: estudos da sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
Brasil. A pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília: MS; 2008.
ELIAS, N. and ESCOTSON, J. Os estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar; 2000.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2015.
SILVA, A.B., et al. Desvelando a cultura, o estigma e a droga enquanto estilo de vida na vivência de pessoas em situação de rua. Ciênc. Saúde Coletiva [online]. 2020, vol. 25, no. 10, pp. 3713-3721 [viewed 16 October 2020]. DOI: 10.1590/1413-812320202510.36212018. Available from: http://ref.scielo.org/cy67d4
WIJK, L.B. and MÂNGIA, E.F. Atenção psicossocial e o cuidado em saúde à população em situação de rua: revisão integrativa. Ciênc. Saúde Coletiva [online]. 2019, vol. 24, no. 9, pp. 3357-3368 [viewed 16 October 2020]. DOI: 10.1590/1413-81232018249.29872017. Available from: http://ref.scielo.org/m4wqxx
DA SILVA, A.B., et al. Desvelando a cultura, o estigma e a droga enquanto estilo de vida na vivência de pessoas em situação de rua. Ciênc. Saúde Coletiva [online]. 2020, vol. 25, no. 10, pp. 3713-3721 [viewed 16 October 2020]. DOI: 10.1590/1413-812320202510.36212018. Available from: http://ref.scielo.org/cy67d4
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DA SILVA, A.B., et al. Desvelando a cultura, o estigma e a droga enquanto estilo de vida na vivência de pessoas em situação de rua. Ciênc. Saúde Coletiva [online]. 2020, vol. 25, no. 10, pp. 3713-3721 [viewed 16 October 2020]. DOI: 10.1590/1413-812320202510.36212018. Available from: http://ref.scielo.org/cy67d4
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