Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Há um grupo específico de pessoas, os criminosos com transtornos mentais, a respeito dos quais a sociedade extramuros nem toma conhecimento e, se toma, não se importa. É sobre o cumprimento de pena desse seguimento de brasileiros e brasileiras o ensaio Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico no sistema prisional: a morte social decretada?, escrito por Oliveira e colaboradores e publicadona Revista Ciência & Saúde Coletiva, edição 27.12. Esses estabelecimentos abrigam as pessoas com transtorno mental em conflito com a lei e consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis.
O primeiro dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) foi fundado em 1921 no Rio de Janeiro (CARRARA, 1998) e, desde 1940, são as instituições preconizadas pela legislação para o cumprimento da Medida de Segurança (MS), caracterizada como uma sanção penal aplicada aos referidos indivíduos. O principal objetivo da MS é a prevenção de distúrbios para a sociedade e a proteção especial para os considerados loucos, mediante a oferta de tratamento compulsório, podendo ser em regime de internação ou ambulatorial, mas dentro do esquema da justiça criminal e do escopo do sistema penitenciário (JACOBINA, 2008).
De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (BRASIL, 2021), atualmente há 2.679 pessoas em cumprimento de Medida de Segurança no país, das quais 86% em regime de internação psiquiátrica e 14% em tratamento ambulatorial. No entanto, existem indivíduos que cumprem a MS em presídios comuns por falta de condições de fazê-lo separadamente e com cuidados específicos. Segundo Diniz (2013), a população dos HCTP é majoritariamente masculina, negra, de baixa escolaridade e com periférica inserção no mundo do trabalho, cuja infração penal quase sempre ocorreu contra uma pessoa de sua rede familiar.
O fato de serem doentes mentais e estarem submetidos a regras do sistema prisional, torna essas pessoas vítimas de inúmeras contradições: tratamento realizado na esfera judicial; participação reduzida na rede pública de saúde e de assistência social; desinternação condicionada à cessação da periculosidade; internações perpétuas, sem indicação clínica para tal; cronificação dos transtornos pela falta de cuidados adequados; e, reforço dos estigmas (GOFFMAN, 2019) que sofrem. Pode-se dizer que no Brasil, a Reforma Psiquiátrica não alcançou os HCTP, o que vem sendo mostrado nos relatórios de inspeção publicados pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e por outros trabalhos que denunciam violações dos direitos humanos (SOARES FILHO, 2016).
Portanto, neste texto se enfatiza a necessidade de desconstrução do estigma e de investimento em novos debates e possibilidades que considerem a garantia de direitos dos cidadãos que sofrem transtornos mentais, a maior parte tratáveis, trazendo a pessoa para o pacífico e saudável convívio social. Historicamente, a medida de segurança foi construída como uma estratégia de biopoder da justiça criminal, onde encontra grande resistência em mudar, com o argumento de periculosidade e com a ideia preconcebida de que as pessoas em sofrimento mental são irrecuperáveis.
Essa postura desconhece todo o avanço da ciência no campo da psicologia, da psiquiatria e da neurologia. Inclusive, as Equipes de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em conflito com a Lei (EAP), instituídas pelo Ministério da Saúde através da Portaria MS/GM nº 94, de 2014 (MS, 2014) foram temporariamente extintas em 2020, e só retornaram após mobilização da sociedade civil e de instituições do sistema de Justiça.
O Brasil pode aprender com iniciativas de outros países como Itália, país com o qual compartilhou o modelo da Reforma Psiquiátrica, onde os HCPT foram extintos ao tempo em que se criaram as Residências para Execução das Medidas de Segurança. Ou com o Reino Unido onde existem as chamadas Ordens de Tratamento Comunitário Supervisionado, que obrigam os pacientes pós-alta a cumprir as condições especificadas por seus médicos, sob a possibilidade de um retorno compulsório ao hospital para nova internação.
A pergunta básica deste estudo é sobre a forma mais adequada de lidar com as pessoas em situações de sofrimento mental que cometem crime: elas deveriam ser encaminhadas para tratamento psiquiátrico compulsório ou se sujeitarem a uma determinada pena? Esse dilema não tem solução única, mas precisa ser discutido, para humanização do sistema carcerário e universalização dos direitos de todos os brasileiros e brasileiras.
Referências
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação de Saúde no Sistema Prisional. Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.
Brasil. Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional. Brasilia: Ministério da Justiça, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen
CARRARA, S.L. Crime e loucura. Rio de Janeiro: Eduerj. 1998.
DINIZ, D. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: Censo 2011. Brasília: Letras Livres/ Editora Universidade de Brasília, 2013.
GOFFMAN, E. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 2019.
JACOBINA, P.V. Direito penal da loucura: medida de segurança e reforma psiquiátrica. Brasília: ESMPU, 2008.
SOARES FILHO, M.M. and BUENO, P.M.M.G. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2016, vol. 21, no. 7, pp. 2101-2110 [viewed 16 December 2022]. https://doi.org/10.1590/1413-81232015217.08802016. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/msHZYSxm584cphLRSPffmSg/
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OLIVEIRA, A.S., et al. Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico no sistema prisional: a morte social decretada? Ciênc. saúde coletiva [online]. 2022, vol. 27, no. 12, pp. 4553-4558 [viewed 15 December 2022]. https://doi.org/10.1590/1413-812320222712.11502022. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/kyWZSZ8ytjv4xJTgCnJDRLn/
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