Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
A participação no Golpe de 1964 de profissionais de saúde, particularmente de médicos, ainda é pouco estudada; nesse sentido, a Ciência & Saúde Coletiva dedicou a edição de outubro de 2024 à discussão da ditadura cívico-militar do ponto de vista da saúde.
Em Doutores da ditadura: médicos e violação dos direitos humanos no Brasil (1964-1985) César Guerra Chevrand e Gilberto Hochman (2024) trazem à luz informações preciosas sobre o tema. Segundo os autores, durante a ditadura cívico-militar, um número expressivo de médicos contribuiu com seus conhecimentos técnico-científicos e suas posições institucionais para a repressão aos opositores do regime, de forma estratégica, organizada e sistemática.
Eles tiveram um papel importante nos interrogatórios aos presos políticos, nas torturas físicas e psicológicas e no encobrimento das violações aos direitos humanos. Mais do que colaboração, tais práticas revelam a inegável inserção dessa categoria nas engrenagens da violência de Estado.O artigo cobre de forma minuciosa o sofrimento que os repressores infligiam aos presos políticos, acobertados e assessorados por médicos e psicólogos que avaliavam a resistência dos presos às dores e agressões psicológicas e morais – para continuar torturando-os – muitas vezes levando-os à morte.
As principais fontes a que os autores recorreram para escrever seu texto são documentos do Projeto Brasil Nunca Mais, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV, 2014) e relatórios de comissões estaduais da verdade. Neles, encontra-se uma participação variada: assistência às sessões de interrogatórios e tortura nas dependências policiais, militares e clandestinas, omissão de socorro, cuidado negligente às vítimas e emissão de laudos médicos, necroscópicos e atestados de óbito fraudulentos.
O envolvimento do conhecimento técnico-científico dos profissionais de saúde na tortura pode ser considerado um processo de modernização da repressão que, se vem acompanhando a história da violência no Brasil desde sua descoberta, se acirrou na ditadura por meio da assessoria de agências do governo dos Estados Unidos a polícias estaduais e a militares brasileiras (Mota, 2010).
A Comissão Nacional da Verdade (CNV), em seu relatório final divulgado em dezembro de 2014, identificou 377 nomes de civis e militares que, comprovadamente por testemunhos, documentos e investigações, foram considerados autores de graves violações de direitos humanos, como mandantes ou perpetradores. Dos quais, 51 médicos, 15% do total (CNV, 2014). No artigo em pauta, os autores expõem vários nomes de médicos envolvidos “na morte e no desaparecimento de 117 do total de 434 pessoas listadas no relatório, ou seja, em cerca de ¼ das vítimas reconhecidas pela CNV” (Chevrand, 2021).
Os saberes e práticas médicas foram mais relevantes nos governos repressivos de Médici (1969-1974) e em parte do mandato de Geisel (1974-1978). Dizem os autores: “A relação direta entre o recrudescimento do regime e o aumento dos crimes em que médicos estiveram implicados sugere que esses profissionais foram mais requisitados à medida que a prática da tortura e o assassinato de opositores do regime, armados ou não, se tornavam política de Estado” (Chevrand; Hochman, 2024).
Felizmente toda realidade é contraditória. Ao contrário da história contada anteriormente, muitos médicos, profissionais e estudantes da área de saúde fizeram parte da resistência à ditadura. Na medida em que os crimes políticos se tornavam mais conhecidos, grupos importantes deles se articularam aos familiares de presos políticos e desaparecidos, jornalistas, advogados, líderes religiosos, organizações e associações profissionais e de trabalhadores que lutaram pelo fim da tortura no Brasil e pela vida democrática (FPA, 2008). É importante dizer também que o chamado “Movimento Sanitário” que teve importância decisiva na criação do SUS, foi gestado nas sombras e brechas do tempo da ditadura (Escorel, 1999).
Vai aqui um convite especial para que os leitores se apropriem do importantíssimo artigo de César e Gilberto que detalha essa “página infeliz de nossa história”. Ela precisa ser contada e revisitada para que nunca mais se repita!
Para ler o artigo, acesse
CHEVRAND, C.G. and HOCHMAN, G. Doutores da ditadura: médicos e violação dos direitos humanos no Brasil (1964-1985). Ciênc saúde coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 10, e11472024 [viewed 2 December 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-812320242910.11472024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/QmHBpVbJX5ysrxF3rphhS3D
Para ler a edição temática completa acesse
Referências
CHEVRAND, C.G. Doutores da Ditadura: Médicos, Repressão Política e Violações de Direitos Humanos no Brasil (1964-1985). Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz; 2021 [viewed 2 December 2024]. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/50269
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE (CNV). Relatório Final, vol. I [online]. 2024 [viewed 2 December 2024]. Available from: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
ESCOREL, S. Reviravolta na Saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Estudo sobre a tortura no Brasil [online]. 2008 [viewed 2 December 2024]. Available from: https://fpabramo.org.br/2008/09/02/estudo-sobre-a-tortura-no-brasil/
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Pesquisa sobre a tortura [online]. 2008 [viewed 2 December 2024]. Available from: https://fpabramo.org.br/2008/09/02/pesquisa-sobre-a-tortura/
MOTTA, R.P.S. Modernizando a repressão: a Usaid e a polícia brasileira. Revista Brasileira de História [online]. 2010, vol. 30, no. 59, pp. 237–266 [viewed 2 December 2024]. https://doi.org/10.1590/S0102-01882010000100012. Available from: https://www.scielo.br/j/rbh/a/wjJXsMbDd4tYt344xJss8sn
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