Isabel Cristina Céspedes, Departamento de Morfologia e Genética, Disciplina de Genética, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil
A transfusão de sangue (hemocomponentes) é uma das intervenções terapêuticas mais comuns em todo o mundo. Isto porque, mesmo sendo um recurso terapêutico que não tenha passado pelas fases de testes necessárias para se garantir sua eficácia e segurança, tornou-se amplamente popular durante as grandes guerras mundiais.
Seguindo a lógica de que o sangue é um tecido facilmente transplantável, e pelo fato de que as principais reações transfusionais imediatas e tardias são aparentemente pouco prevalentes (muitas vezes por não serem documentadas), a atual medicina baseada em evidências tem concluído que esta prática segue muito mais os hábitos médicos do que uma visão crítica sobre o assunto.
Contudo, pesquisas recentes têm mostrado que a transfusão de sangue está associada a uma série de riscos, a partir de efeitos imunomodulatórios e inflamatórios que aumentam a suscetibilidade a infecções, prolongam o tempo de internação e elevam a morbidade e mortalidade dos pacientes, independente de fatores confundidores (condições do paciente, equipe de saúde ou infraestrutura hospitalar) (Anthes, 2015; Farmer et al., 2008). Além disso, o envelhecimento populacional aumentará a escassez de hemocomponentes nos estoques (Farmer et al., 2013).
As transfusões alogênicas também representam um custo significativo para o sistema de saúde, com despesas de produção, transporte, armazenamento e administração hospitalar (Hofmann et al., 2022). Em 2023, a Joint Commission relatou que 86,48% das transfusões em hospitais americanos foram inadequadas, resultando em elevados custos financeiros (Jadwin et al., 2023).
Neste contexto, o programa de Gerenciamento do Sangue do Paciente (Patient Blood Management, PBM), cujo modelo foi publicado no artigo Patient Blood Management Program Implementation: Comprehensive Recommendations and Practical Strategies (Brazilian Journal of Cardiovascular Surgery, vol. 39, no. 5, 2024), visa promover a segurança do paciente, através de uma abordagem baseada em evidências científicas, gerenciando e preservando o sangue do próprio paciente, e promovendo uma significativa redução no uso de transfusões de sangue alogênico em pacientes clínicos e cirúrgicos.
O PBM baseia-se em três pilares principais: (1) tratamento de anemias e coagulopatias de forma otimizada, especialmente no período pré-operatório; (2) otimização da hemostasia perioperatória e uso de sistemas de recuperação sanguínea para evitar a perda do sangue do paciente no período intraoperatório; (3) tolerância à anemia, com maior oferta e redução da demanda de oxigênio, principalmente no período pós-operatório (Farmer et al., 2013; Santos et al., 2014).
No Brasil, a maioria das estratégias para a implementação do PBM está disponível no SUS, o que garante a sua viabilidade nos hospitais públicos (Santos et al., 2014). Em 2021, a OMS destacou a urgência de implementar o PBM globalmente (WHO, 2021).
Assim, os autores realizaram uma ampla revisão da literatura, buscando identificar as principais estratégias que compõem os pilares do PBM e sistematizar um modelo prático e abrangente de como implementar o PBM em um hospital de alta complexidade.
Com base na experiência de implementação do Grupo PBM-HU-UNIFESP, responsável pela implementação do PBM no Hospital São Paulo (Hospital Universitário da UNIFESP – HU/UNIFESP), foram recomendados 10 passos práticos e abrangentes para a implementação do PBM (Figura 1).
Figura 1. Esse diagrama descreve o passo a passo do plano de implementação do Gerenciamento do Sangue do Paciente (Patient Blood Management – PBM).
Com o uso dos 10 passos acima mencionados, o Grupo PBM-HU-UNIFESP demonstrou a sua aplicação com base em evidências científicas atuais, que apoiam a eficácia do PBM em reduzir a necessidade de transfusões sanguíneas, diminuir as complicações associadas e promover um manejo mais eficiente e seguro do sangue.
No 1º passo, é necessário que uma liderança local tome a Iniciativa de difundir e estimular a aplicação dos princípios do PBM, como na UNIFESP, que contou com a iniciativa de uma liderança do corpo docente da Escola Paulista de Medicina. Esta liderança buscou o apoio da diretoria clínica do HU/UNIFESP para seguir com ações institucionalizadas.
A partir de então, no 2º passo, a criação de um Grupo de Trabalho incluiu profissionais das áreas de Hematologia/Hemoterapia, de ao menos duas áreas Cirúrgicas, Anestesiologia, Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), Enfermagem, Diretoria Clínica, Suprimentos, Engenharia Clínica e Farmácia.
No 3º passo, recomenda-se a definição de uma ou duas Áreas-Piloto, como no HU/UNIFESP com a seleção das áreas de Cirurgia Cardiovascular, pelo maior risco de perda sanguínea, e Neurocirurgia, pela disposição em participar do processo.
No 4º passo, destacam-se o uso de questionários eletrônicos para o Diagnóstico do conhecimento, da infraestrutura hospitalar e de pessoal, aspectos que constituem a base da implementação. O HU/UNIFESP desenvolveu modelos destes questionários que segundo os autores podem ser compartilhados.
No 5º. passo, com base no diagnóstico do conhecimento da equipe, a disponibilização de um curso de Capacitação para residentes, médicos, enfermeiros e gestores, já existente no HU-UNIFESP, deve suprir a lacuna de conhecimento sobre o PBM existente na formação dos profissionais da saúde. Segundo os autores, a UNIFESP realiza acordos de parceria para oferta do curso gratuitamente.
Para o 6º passo, deve-se Definir quais Estratégias do PBM podem ser implementadas com base no diagnóstico de infraestrutura e de pessoal, e, a partir disso, tem-se a criação de Protocolos assistenciais que deem base para a nova linha de cuidado do paciente, a partir das estratégias do PBM sugeridas por Farmer et al. (2013) e Santos et al. (2014). Os protocolos assistenciais do HU/UNIFESP estão disponíveis na página da internet do Grupo PBM-HU-UNIFESP.
No 7º passo, tem a definição de uma Data de Início a partir da consolidação das etapas anteriores, para posterior análise de dados clínicos e financeiros pré e pós-PBM, como ocorreu no HU/UNIFESP.
E, para sustentabilidade, ampliação e aprimoramento do PBM, segue-se a recomendação do 8º passo, que destaca a necessidade de Reuniões Quinzenais do Grupo de Trabalho, como tem realizado o Grupo PBM-HU-UNIFESP.
Com o avanço do tempo, deve-se preparar o 9º passo, que é a Avaliação dos Resultados, analisando índices globais de uso de hemocomponentes, taxas de infecção, tempo internação pós-operatório, reoperações, complicações pós-operatórias e mortalidade na área implementada.
E concluindo-se, no 10º passo, promover Auditoria de Conformidade e de Resultados por um Comitê Consultivo formado dentro do Grupo de Trabalho, e incluindo um representante do setor de segurança do paciente ou do setor de qualidade do hospital, e um representante da diretoria administrativa (Céspedes et al., 2024).
Assim, a proposta do artigo foi sistematizar as estratégias do PBM em um modelo prático e estruturado para a implementação do PBM em hospitais terciários. As recomendações propostas são de pesquisadores e especialistas de um hospital universitário de alta complexidade da rede do Sistema Único de Saúde, apresentando-se como uma estratégia que pode ser seguida como diretriz para a implementação em outros cenários.
Para ler o artigo, acesse
CÉSPEDES, I.C., et al. Patient Blood Management Program Implementation: Comprehensive Recommendations and Practical Strategies. Braz J Cardiovasc Surg [online]. 2024, vol. 39, no. 5, e20240205 [viewed 4 December 2024]. https://doi.org/10.21470/1678-9741-2024-0205. Available from: https://www.scielo.br/j/rbccv/a/9jCr4XGzbh85xyKv9PYChWC
Referências
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Links externos
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