Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Apresentando a frutífera parceria do SUS (Sistema Único de Saúde) com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e trazendo para os leitores a discussão de conceitos muito caros ao setor saúde, em vários momentos da edição de novembro (vol. 29, no. 11) da Ciência & Saúde Coletiva, a interinstitucionalidade SUS-IBGE mostra que, por trás das estatísticas, há o compartilhamento de um pensamento compreensivo, sofisticado e complexo. O artigo Trajetória na identificação das pessoas com deficiência no Brasil: uma análise das pesquisas domiciliares do IBGE (Botelho et al, 2024) elucida os principais aspectos dessa relação.
As autoras recorrem à pesquisa documental e bibliográfica para revelar a influência dos históricos debates sobre o conceito de deficiência e como ele vem sendo absorvido teoricamente e na prática estatística. Fica evidente que esse construto sociocultural avançou em sua significância pari passu com a consciência social, tanto no país como internacionalmente. Por exemplo, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável coloca, entre seus alvos, a inclusão das pessoas com deficiência.
Vale a pena retornar no tempo. No 1º Congresso Internacional de Estatística, convocado para harmonizar a coleta de dados e a publicação de informações, tornando-as passíveis de comparação no mundo, foi aventada a necessidade de investigar a presença de pessoas com deficiência nos domicílios (Levi, 1854). Porém, nesse tempo, falava-se em descobrir a causa dos distúrbios mentais para estimar as possibilidades de cura (Levi, 1855), e sobre a necessidade de contar quantas pessoas tinham deficiência, pois eram consideradas um fardo para a riqueza dos países e para a produtividade do trabalho (Brown, 1857).
No Brasil, o primeiro Recenseamento Geral do Império foi em 1872. Desde então até o Censo de 1940, as formas de identificar as pessoas com deficiência restringiam-se a um pequeno número de características (Botelho et al, 2018; Botelho, 2020): cegueira e surdez. As pessoas com deficiência eram tratadas como “idiotas”, “com defeito físico” e “aleijadas”. A partir de 1940, o IBGE só voltou a levantar informações a respeito do tema na década de 1980.
Em tempos passados, o modelo moral era o mais usado para lidar com a deficiência, interpretada como pecado, castigo divino e motivo de vergonha. O desenvolvimento da filosofia humanista e o avanço da ciência favoreceram a difusão do modelo médico que se afastou das ideias religiosas e passou a conceber a deficiência como fenômeno biológico e desvio patológico do corpo padrão (UPIAS, 1976).
Na segunda metade do século XX, ativistas com deficiência do Reino Unido formularam o modelo social. Sua principal inovação foi definir a deficiência como um fenômeno de responsabilidade coletiva (Degener, 2016). O modelo social tem influenciado não só os estudos de deficiência, como normativas internacionais, tais como a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Washington Group on Desability Statistics, 2020). Leis e políticas públicas passaram a avaliar a deficiência, uma causa social e pública.
Claro que os modelos morais e biomédicos reducionistas persistem e as pessoas com dificuldades mais severas são as que enfrentam maiores dificuldades de acesso à educação e ao mercado de trabalho. Mas a consciência social e forma de tratamento no campo da saúde evoluíram tremendamente.
Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2019), a prevalência de deficiência na população brasileira é de 8,4 por 100.000 habitantes o que atinge 17,3 milhões de pessoas. Desse total, ressalta-se o acesso à escola de 92,4% das crianças e jovens entre quatro e 17 anos com deficiência, frente a mais de 97% das que não apresentam deficiências ou têm deficiências leves.
Há hoje, no Brasil e no mundo, um esforço enorme para incluir pessoas desse grupo em atividades laborais (70% com pequena deficiência, 50,5% com deficiência severa, contra 79% sem deficiência). É preciso reconhecer o desenvolvimento de conceitos como o modelo social de deficiência como uma conquista da humanidade e da ciência, inclusive das ciências estatísticas.
Gráfico 1. Pirâmide etária das pessoas com Deficiência, 2019/2022
Para ler o artigo, acesse
BOTELHO, L.C. and LENZI, M.B. Trajetória da identificação das pessoas com deficiência no Brasil: uma análise das pesquisas domiciliares do IBGE. Ciênc saúde coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 11, e03932024 [viewed 16 December 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-812320242911.03932024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/PN9KspTnxf8CJJ5NkPyHDzN
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Referências
BOTELHO, L. (Org.). Censo 2021. Experiências na América do Sul. Rio de Janeiro: Sindicato Nacional dos Trabalhadores do IBGE – ASSIBGE Núcleo Chile, 2020.
BOTELHO, L. and PORCIUNCULA, K. Os Desafios para a produção de indicadores sobre pessoas com deficiência: ontem, hoje e amanhã. In: Simões, A.; Ateias, L.; Botelho, L. (org.). Panorama nacional e internacional da produção de indicadores sociais. Grupos populacionais específicos e uso do tempo. Rio de Janeiro: IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais, p. 116-169; 2018.
BOTELHO, L.C. and LENZI, M.B. Trajetória da identificação das pessoas com deficiência no Brasil: uma análise das pesquisas domiciliares do IBGE. Ciênc saúde coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 11, e03932024 [viewed 16 December 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-812320242911.03932024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/PN9KspTnxf8CJJ5NkPyHDzN
BROWN, S. Report on the International Statistical Congress, Held at Vienna, September, 1857. Journal of the Statistical Society of London. 1858, vol. 21, no. 1, pp. 1–17.
DEGENER, T. A human rights model of disability. In: BLANCK, P. and FLYNN, E. (org.). Routledge Handbook of Disability Law and Human Rights. London: Routledge, 2016.
LEVI, L. Resume of the Second Session of the International Statistical Congress Held at Paris, September, 1855. Journal of the Statistical Society of London. 1856, vol. 19, no. 1, pp. 1–11.
LEVI, L. Resume of the Statistical Congress, held at Brussels, September 11th, 1853, for the Purpose of Introducing Unity in the Statistical Documents of all Countries. Journal of the Statistical Society of London. 1854, vol. 17, no. 1, pp. 1–14.
Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 (PNS). Ciclos de vida. Rio de Janeiro; 2021.
UPIAS DISABILITY ALLIANCE. Fundamental Principles of Disability. London: Union of the Physicaly Impaired Against Segregation, Disability Alliance. 1976.
WASHINGTON GROUP ON DISABILITY STATISTICS. The Washington Group Short Set on Functioning – Enhanced (WG-SS Enhanced) Brazilian Portuguese Translation. 2020.
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