Júlio César Lopardo Alves, Gestão Editorial da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, SP, Brasil.
Tarsila Baptista Ponce, Gestão Editorial da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, SP, Brasil.
As entrevistadas – Ana Paula Neves e Ariane Leites Larentis – atuam no “Projeto integrador multicêntrico: Estudo do impacto à saúde de agentes de combate às endemias/guardas de endemias pela exposição a agrotóxicos no estado do Rio de Janeiro”, ligado ao Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia da Humana, da Fiocruz. O projeto envolve outras instituições e os próprios agentes de combate a endemias.
Ana Paula Neves é doutoranda do programa de Pós-Graduação em Saúde Pública e Meio Ambiente da Fiocruz/RJ. Ariane Leites Larentis é pesquisadora da Fiocruz e coordenadora do “Projeto integrador multicêntrico: Estudo do impacto à saúde de agentes de combate às endemias/guardas de endemias (ACE) pela exposição a agrotóxicos no estado do Rio de Janeiro”.
As pesquisadoras estão entre as autoras do ensaio O processo de trabalho dos agentes de combate às endemias no Brasil em uma perspectiva crítica à ideologia do desenvolvimento sustentável, publicado no volume 50 (2025) da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO). As entrevistadas responderam conjuntamente às perguntas, que tratam da luta por saúde dos ACE e da importância da atuação conjunta de pesquisadores e trabalhadores.
Poderiam nos contar um pouco sobre o processo de trabalho e a luta por saúde dos Agentes de Combate a Endemias (ACE) do estado do Rio de Janeiro.
A luta dos ACE é de longa data e é contada por eles mesmos: entre as décadas de 1980/90, foram realizadas contratações e concursos em caráter temporário para trabalhadores de endemias, devido a surtos de dengue e febre amarela. Entretanto, apesar do êxito das campanhas, em 1999, os trabalhadores foram demitidos sem aviso prévio, direitos trabalhistas, incluindo os de segurança e saúde do trabalhador (SST), ou cobertura previdenciária. Os trabalhadores organizaram passeatas, ações políticas, ocupação pacífica de órgãos públicos e processo judicial. Em 2003, o Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro condenou o Ministério da Saúde a reintegrar os ACE. No ano de 2006, os trabalhadores foram oficialmente nomeados na função de “Agentes de Combate às Endemias (ACE)” regidos pela CLT e, em 2014, os ACE migraram para o regime estatutário (RJU) (Larentis, et al., 2021).
A maioria dos ACE desempenha, ou já desempenhou, função com contato direto com agrotóxicos para “combater” vetores de arboviroses, e, mesmo após a regulamentação do contrato trabalhista, convivem com os descumprimentos das regras de SST, como inadequação da infraestrutura dos espaços físicos temporariamente utilizados durante as campanhas, chamados de pontos de apoio (PAs), onde ficam incorretamente guardados os agrotóxicos e equipamentos, sendo também utilizados para descanso, alimentação e higiene dos trabalhadores. Além disso, ocorre a manipulação de diversas substâncias tóxicas, muitas vezes sem os equipamentos de proteção individual (EPI) ou com EPI fora da validade ou do prazo de troca, por falta de fornecimento por parte dos entes públicos, e treinamentos insuficientes para a realização da atividade, bem como a falta de acompanhamento médico periódico adequado (Neves, et al., 2025).
Alguns trabalhadores relatam que, quando iniciaram o trabalho de campo, na década de 1980/90, eram estimulados pela chefia a ingerir num copo d’água o larvicida organofosforado temefós (Abate®) diante do morador para evitar a recusa do tratamento na residência, em especial na caixa d’água. Sem qualquer informação sobre as substâncias que manipulavam e os danos que causavam, os trabalhadores atendiam ao pedido da chefia. Os trabalhadores começaram a notar que alguns colegas de trabalho começaram a apresentar sintomas de intoxicação: alergias, baixa imunidade, problemas respiratórios. Com o passar do tempo, houve casos de impotência, infertilidade, má formação fetal, desregulação do sistema endócrino, causando doenças nas glândulas, doenças ligadas à ergonomia, distúrbios neurológicos e câncer, além de muitos óbitos entre os colegas, ainda muito jovens. Constataram a real possibilidade de os larvicidas/inseticidas manuseados, que a maioria nem sabia que se chamavam agrotóxicos, serem os motivadores das doenças que os acometiam (Larentis, et al, 2021).
A primeira ajuda foi buscada no setor de toxicologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde foram acolhidos pela médica Heloísa Pacheco, depois o Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/Ensp) da Fiocruz, onde houve um avanço significativo com a criação, em 2018, do “Projeto integrador multicêntrico: Estudo do impacto à saúde de agentes de combate às endemias/guardas de endemias pela exposição a agrotóxicos no estado do Rio de Janeiro”, como um instrumento para sistematização de dados de adoecimento/morte, e apoio nas lutas judiciais e políticas em curso pelo reconhecimento da exposição e a necessidade de mudanças no processo de trabalho dos ACE.

Image: Via Fiocruz
Poderiam comentar o método de produção de conhecimento empregado no ensaio, a Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP)? Qual a importância da CAP para o campo Saúde do Trabalhador?
O projeto está situado no campo da Saúde do Trabalhador e se inspira no Movimento Operário Italiano (MOI) (Oddone, et al., 1986), que, por sua vez, tem bases marxistas, assim como nas experiências da Medicina Social Latino Americana (Laurell, 1984). Desta forma, foi organizado e atua sob a perspectiva de uma Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP), compreendendo que a construção do conhecimento se dá através do debate sinérgico dos diferentes saberes, o técnico-científico e aquele acumulado pelos protagonistas do trabalho em suas atividades, chamado de saber operário. Na CAP, a ciência é construída dialogicamente entre os trabalhadores e os pesquisadores, buscando romper com uma divisão sociotécnica do trabalho e superar as experiências desenvolvidas nos modelos tradicionais de saúde ocupacional.
Pondo em prática o conceito do MOI “para controlar é preciso, antes de mais nada, conhecer”, a CAP é caracterizada pela não-delegação, ou seja, a construção de conhecimento começa a partir do saber operário, uma vez que se considera que ninguém conhece melhor o seu processo de trabalho do que o próprio trabalhador. Os ACE participam das discussões, construções e ações como sujeitos principais, não como meras amostras. Eles são sujeitos ativos em todo o processo de avaliação, das condições de trabalho até a proposta de ações, desenvolvendo a pesquisa de sua própria realidade. São realizados fóruns de discussão com os ACE, estudantes e pesquisadores semanalmente; participação dos trabalhadores nas bancas de avaliação dos estudantes de pós-graduação, na construção de textos como boletins, notas técnicas e artigos científicos; e cursos de formação (Oddone, et al., 1986).
Como surgiu a ideia de criticar a “ideologia do desenvolvimento sustentável” a partir do processo de trabalho dos Agentes de Combate a Endemias (ACE) do estado do Rio de Janeiro?
A ideia surgiu através da imersão do grupo do projeto integrador multicêntrico com a realidade concreta do processo de trabalho dos ACE e pela verificação da completa contradição com as metas internas adotadas pelo Brasil para cumprimento da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e seus 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS). O trabalho de combate vetorial como uma estratégia de Saúde Pública se inter-relaciona diretamente com algumas das metas internas do Brasil: a redução do número de mortes e doenças por produtos químicos perigosos, como os agrotóxicos; redução da contaminação humana e ambiental, e poluição do ar, água e do solo; apoio para o desenvolvimento tecnológico e eliminação de doenças negligenciadas e arboviroses transmitidas pelo Aedes aegypti e outras doenças transmissíveis; acesso a saneamento ambiental e higiene adequados e equitativos para todos; melhor gestão de resíduos sólidos; acesso universal e equitativo à água para consumo humano, segura e acessível para todas e todos; e garantia ao acesso de todos à moradia digna, adequada e a preço acessível aos serviços básicos e urbanização. Todas estas medidas, se concretizadas, agiriam na raiz, na causa, dos altos índices de doenças transmitidas por vetores no país, pois eliminariam as condições favoráveis para a proliferação dos vetores e dos micro-organismos causadores das doenças (Neves, et al., 2025).
Em relação aos processos de trabalho e saúde do trabalhador, uma meta interna dos ODS tem como objetivos a garantia de trabalho “decente/digno” e a “redução do grau de descumprimento da legislação trabalhista”, no que diz respeito ao registro, às condições de trabalho, às normas de saúde e segurança no trabalho. Porém, pudemos constatar que a realidade brasileira sobre este tema é totalmente oposta às metas internas adotadas. Partimos do materialismo histórico de Marx como fundamento teórico para analisar esta contradição e observamos que o Brasil, com sua economia subordinada ao capitalismo globalizado hierarquizado, atua na divisão internacional do trabalho como nação exportadora de produtos alimentícios e commodities baseada fortemente no agronegócio. Desde 2008, nosso país é o maior importador de agrotóxicos do mundo e compra, inclusive, substâncias já banidas nos países do Norte global por causarem danos à saúde humana e ambiental, com potencial carcinogênico. Esses produtos são massiva e indiscriminadamente utilizados aqui para produção agrícola e combate às endemias. A realidade econômica do Brasil, um país “em desenvolvimento”, não o permite avançar na melhoria da infraestrutura urbana e condições de vida de seus cidadãos e trabalhadores, que, assim como os ACE, são precarizados e não têm nem o mínimo de seus direitos, conquistados com muita luta dos trabalhadores, respeitados, como demonstrado acima. Dentro dos limites do sistema capitalista, não é possível atingir a sustentabilidade ou o desenvolvimento sustentável (Neves, et al., 2025).
Qual a importância das instituições de pesquisa e revistas científicas na luta por saúde dos Agentes de Combate a Endemias (ACE) do estado do Rio de Janeiro?
A partir da busca pela construção de uma forma não reducionista de fazer ciência empregando a comunidade ampliada de pesquisa, o desenvolvimento da pesquisa e a publicação em revistas têm por objetivo principal dar suporte à luta dos trabalhadores, em todos os âmbitos: judicial, político e científico. Como problematizado por Laurell (1984), a ciência desenvolvida no capitalismo, sem subverter esta lógica, trata dos interesses das classes dominadas de forma secundária, subordinada, pois seu objetivo principal está associado aos interesses das classes dominantes. Por isso buscamos desenvolver uma ciência não neutra, associada aos interesses dos trabalhadores, discutindo com eles conceitualmente e estrategicamente como desenvolver a pesquisa. Considerando que conceitos científicos expressam luta de classes no processo de desenvolvimento teórico/prático, existem questões científicas que nós, da academia, precisamos enfrentar e avançar: conceitos da epidemiologia, toxicologia e ciências sociais tradicionais não dão conta de caracterizar os processos que enfrentamos (Larentis, et al., 2023). Mesmo que o quadro de adoecimento e morte destes trabalhadores seja compatível com o que os agrotóxicos causam cronicamente, segundo o conhecimento da literatura, de estudos internacionais e brasileiros, a exposição precisa sempre ser “provada”, pois muitas vezes os dados mostram o confundimento do processo de doenças crônicas com outras fontes (consumo, exposição ambiental, etc.). Do ponto de vista da precaução, na dúvida e com várias fontes de exposição, os processos produtivos deveriam ser mudados e não permanecerem como mais uma fonte de adoecimento (Neves, et al., no prelo).
Para ler o artigo, acesse
NEVES, A.P., et al. O Processo de Trabalho dos Agentes de Combate às Endemias no Brasil em uma Perspectiva Crítica à Ideologia do Desenvolvimento Sustentável. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional [online]. 2025, vol. 50, eddsst11 [viewed 6 November 2025]. https://doi.org/10.1590/2317-6369/14624pt2025v50eddsst11 Available from: https://www.scielo.br/j/rbso/a/jSLzG6CzhfLGmRY9zGtnBmM/
Referências
LARENTIS, A.L., et al. Adoecimento e mortes de Agentes de Combate às Endemias no Estado do Rio de Janeiro expostos a agrotóxicos: crítica ao processo de trabalho e construção coletiva de estratégias de enfrentamento. In: PINA J.A., et al. Saber operário, construção de conhecimento e a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo: Hucitec Editora, 2021. 455 p.
LARENTIS, A.L., et al. Relação Biológico e Social: reducionismos presentes e perspectivas para a Saúde Coletiva. In: HERBST, M.H., et al. Bachelard e as Ciências: obstáculos epistemológicos no desenvolvimento e no ensino-aprendizagem de Biologia, Química e Ciências Sociais. Curitiba: Appris Editora, 2023, p. 195-223.
LAURELL, A.C. Ciencia y experiência obrera: la lucha por la salud em Italia. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional [online]. 2017, vol. 42, e12 [viewed 6 November 2025]. http://dx.doi.org/10.1590/2317-6369000024616. Available from: https://www.scielo.br/j/rbso/a/sKc9Js7q63fBGsffpqndSFk/
LAURELL, A.C. Ciencia y experiência obrera: la lucha por la salud em Italia. Cuadernos Políticos [online]. 1984, v. 41, p. 63-83 [viewed 6 November 2025]. Available from: https://pt.scribd.com/document/58327618/Laurell-AC-Ciencia-y-Experiencia-Obrera-La-Lucha-Por-La-Salud-en-Italia
NEVES, A.P., et al. Relato da construção do laudo coletivo de nexo entre exposição a agrotóxicos e adoecimento em trabalhadores do combate às endemias no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional.
ODDONE, I., et al. Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo: Hucitec Editora; 1986.
Links externos
Revista Brasileira de Saúde Ocupacional – RBSO
Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (Fundacentro)
Revista Brasileira de Saúde Ocupacional – X
Como citar este post [ISO 690/2010]:















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