Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Um dos níveis de atenção à saúde que mais se desenvolveu na América Latina, sobretudo a partir da primeira década do século XXI, é a Atenção Primária (APS) (Giovanella et al., 2015). A APS tem como propósito cuidar da saúde das pessoas, em vez de apenas tratar doenças ou condições específicas, ofertando atendimento abrangente, acessível e baseado na comunidade. Sabe-se que esse nível do sistema pode atender de 80% a 90% das necessidades de saúde dos cidadãos. Por exemplo, o Brasil atingiu a marca histórica de 50.804 equipes de Saúde da Família (ESF) em dezembro de 2023, que se distribuem por aproximadamente 36.590 Unidades Básicas em 99,17% dos municípios brasileiros, universalizando o acesso aos serviços para os cidadãos.
No artigo Perspectivas para las Políticas Públicas de Atención Primaria en Salud (UBS) en Suramérica, escrito por Almeida et al. (2024), a análise desse nível de cuidados se estende a mais oito países: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai. Os autores identificaram semelhanças e diferenças nos processos de institucionalização e evidenciaram estratégias para a democratização do acesso.
Em todos os nove países citados houve avanços na implementação da APS, o que vem contribuindo para a construção de instituições democráticas e superação da miséria e da pobreza por meio do acesso à saúde, a programas de assistência social, de pensões não-contributivas e de transferência de renda (Fleury, 2017). Tais avanços, no entanto, não são homogêneos nem no alcance, nem no tempo de existência, havendo ainda muita falta e fragmentação na oferta de cuidados (Conill et al., 2018).
Sendo a APS o primeiro nível de efetivação do direito à saúde (WHO/UNICEF, 2022) é fundamental analisar até que ponto a legislação dos nove países contempla esse tema. Ele está explícito nas Constituições do Brasil (1988), da Bolívia (2009) e do Equador (2009) (Tejerina-Silva, 2015). A Corte Constitucional da Colômbia (1991) também o consagrou como direito e responsabilidade do Estado. No Uruguai, ela é objeto de uma legislação nacional (2007), assim como no Paraguai, que reformou seu Sistema de Saúde em 2008. A Argentina segue pactos internacionais no mesmo sentido (Rios, 2015). Na Constituição do Peru, o direito à saúde é atribuição mista do Estado e do mercado. O Chile se encontra em processo de elaboração de uma nova Constituição que amplia direitos sociais e de saúde (Vega-Romero et al., 2015). Em resumo, neste momento, apenas três países consagram o direito universal à saúde na Constituição e a maioria, a partir dos anos 2000, tem desenvolvido sistemas universais ou mistos por meio de leis, ou protocolos.
Embora os marcos legais sejam diferenciados, os nove países analisados destacam a APS como prioridade para reduzir desigualdades em saúde. A provisão de serviços é descentralizada para os municípios em cinco países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Equador) (Vega-Romero et al., 2015). Nos outros, esses serviços estão diretamente vinculados ao Ministério de Saúde, como é o caso do Paraguai e do Uruguai. Na Colômbia, as seguradoras privadas desempenham um papel importante, e as autoridades locais têm a atribuição de definir seu próprio modelo de organização. No Peru, ainda que as gestões locais tenham um papel importante, as administradoras de seguro contratam serviços públicos ou privados para um conjunto de ações. No Uruguai, a organização dos serviços é distinta entre as entidades públicas e privadas que compõem o sistema integrado de saúde.
Apesar de toda a diversidade, há aspectos comuns à APS em todos os países: (a) foco na unidade familiar, na comunidade e na interculturalidade, o que requer ações de equipes multiprofissionais; (b) fortalecimento da APS como porta de entrada; (c) inclusão das funções de diagnóstico, tratamento, cura e reabilitação e não apenas de ações de promoção (Giovanella et al., 2021).
Um ponto importante a ser observado é que nos países que adotaram atendimento público e por seguro, a cobertura privada se concentra no cuidado médico individual e em consultas ambulatoriais, ao contrário do sistema público, que é muito mais complexo e inclui participação comunitária.
Considerados todos os pontos comuns e divergentes, em todos os nove países estudados há um número insuficiente de trabalhadores e de oferta de serviços. Mais escassa ainda é a disponibilidade de profissionais em especialidades (Conill et al., 2018). Ou seja, falta muito para a Atenção Primária à Saúde cumprir plenamente seu papel de porta de entrada dos sistemas de saúde sul-americanos e como estratégia potente de democratização. Há que continuar e que investir, pois a saúde é o bem mais precioso para os cidadãos!
Referências
CONILL, E.M., et al. Determinantes sociais, condicionantes e desempenho dos serviços de saúde em países da América Latina, Portugal e Espanha. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2018, vol. 23, no. 7, pp. 2171-2186 [viewed 27 August 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-81232018237.07992018. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/nN38ZyBxdX8v56qCwqDYydL/
FLEURY, S. The Welfare State in Latin America: reform, innovation and fatigue. Cadernos de Saúde Publica. 2017, vol. 33, Suppl. 2, e00058116 [viewed 27 August 2024]. https://doi.org/10.15090/0102-311X00058116. Available from: https://www.scielo.br/j/csp/a/F8b5x8QFyMh8zP7DhZ3McBB/
GIOVANELLA, L., et al. Cobertura da Estratégia Saúde da Família no Brasil: o que nos mostram as Pesquisas Nacionais de Saúde 2013 e 2019. Ciência Saúde Coletiva [online]. 2021, vol. 26, no. l1, pp. 2543-2556 [viewed 27 August 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-81232021266.1.43952020. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/SMZVrPZRgHrCTx57H35Ttsz/
GIOVANELLA, L. (org). Atención Primaria de Salud em Suramérica. Rio de Janeiro: Instituto Sul-americano de Governo em Saúde, ISAGS, 2015, pp. 298.
RÍOS, G. Atención primaria de salud en Argentina, Paraguay y Uruguay. In: GIOVANELLA, L. (org). Atención Primaria de Salud em Suramérica. Rio de Janeiro: Instituto Sul-americano de Governo em Saúde, ISAGS, 2015, pp. 59-111.
TEJERINA-SILVA, H. Atención primaria de salud en Bolivia, Ecuador y Venezuela: ¿Transición hacia la atención primaria integral? In: Giovanella L (org). Atención Primaria de Salud en Suramérica. Rio de Janeiro: ISAGS, 2015, pp. 111-151.
VEGA ROMERO, R. and ACOSTA RAMÍREZ, N. La atención primaria em sistemas de salud basados en el aseguramiento: El caso de Chile, Colombia y Perú. In: GIOVANELLA, L. (coord.). Atención Primaria de Salud en Suramérica. Rio de Janeiro: ISAGS, 2015, pp. 155-192.
WHO/UNICEF. Primary health care measurement framework and indicators: monitoring health systems through a primary health care lens [online]. Geneva: World Health Organization and the United Nations Children’s Fund (UNICEF), 2022 [viewed 27 August 2024]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789240044210
Para ler o artigo, acesse
ALMEIDA, P.F., et al. Perspectivas para las políticas públicas de Atención Primaria en Salud en Suramérica. Ciênc saúde coletiva [online]. 2024, vol. 29, no. 7, e03792024 [viewed 27 August 2024]. https://doi.org/10.1590/1413-81232024297.03792024. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/mSxjg6fjz44BknWc3C4QjSw/
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