Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
A edição 26.12.2021 da Revista Ciência & Saúde Coletiva está dedicada à “saúde do trabalhador”. Dentre os assuntos nela tratados, escolhemos resenhar o artigo Parceiros assimétricos: trabalho e saúde de motoristas por aplicativos no Rio de Janeiro, escrito por Masson et al (2021), pela significância do tema frente às profundas transformações pelas quais passa o mundo do trabalho.
Nos últimos anos, tecnologias da microeletrônica vêm estendendo velozmente sua capacidade de uso e gerenciamento de dados que conectam consumidores e prestadores de serviço a custos cada vez mais baixos (SOUZA et al, 20210). Claro que isso agrada ao consumidor. No entanto, é preciso pensar o que significa para a classe trabalhadora.
A uberização é exemplo de uma atividade just-on-time, criada por uma empresa-plataforma que, sem deter patrimônio material significativo, constituiu-se vertiginosamente como uma gigante corporativa. Sustentada por mecanismos de coordenação algorítmica, essa empresa propõe sincronizar interesses de distintos grupos (consumidores, produtores e provedores) considerados por ela como independentes. Seu argumento principal é uma suposta economia de compartilhamento. Porém, por meio de suas práticas, a uberização corrobora e amplia processos alarmantes de precarização do trabalho e de deterioração de direitos trabalhistas.
Para os autores, que citam Abilio (2019), a uberização é uma nova forma de controle e organização do trabalho operada de maneira dissimulada a partir de um gerenciamento algorítmico, caracterizando-se pela concepção de um trabalhador sem garantias legais e contratuais; pela apresentação da empresa como mediadora e não como contratante; pela passagem de um contingente predefinido de trabalhadores para a figura de uma multidão de trabalhadores disponíveis; e pelo deslizamento da identidade profissional do trabalho para a de trabalho amador (dissimulado como empreendedor).
Essa nova configuração de organização e de gerenciamento traz importantes consequências sobre a subordinação jurídica do emprego, sobre o processo de apropriação da energia humana e sobre os custos que ela comporta para as pessoas. A Uber, que tem três milhões de motoristas no mundo, conta com seiscentos mil no Brasil (MELEK e Boskovic, 2019).
Neste momento de forte crise econômica e política, com altos índices de desemprego e informalidade, a chegada e expansão vertiginosa dessa empresa-plataforma de mobilidade urbana encontrou, nos últimos seis anos, terreno fértil no país, cenário agravado com a pandemia de COVID-19. É preciso ficar claro que aqui a uberização veio preencher o vazio da perda de emprego fixo, da desindustrialização, e reforçar os processos de automação e robotização dos processos de trabalho. Esse movimento prejudicou, particularmente, dois segmentos de trabalhadores: os acima de 45 anos e os jovens que não conseguem se inserir no mercado.
Masson et al (2021) ressaltam que a empresa-plataforma Uber se distancia da realidade vivida pelos trabalhadores, ignora suas condições de vida e tem um custo quase zero com a maquinaria, a matéria-prima (combustíveis, reparos, renovação de frota) e a força de trabalho. O emprego do termo parceiro que utiliza para se referir ao motorista em sua autodescrição acoberta uma relação de trabalho de suposta autonomia e flexibilidade usada para o não reconhecimento da responsabilidade com deveres trabalhistas, a partir da ideia de horizontalidade entre o motorista e a empresa. O discurso de liberdade que vende se alia a um alto nível de controle da conduta dos trabalhadores por meio de programação, ou como SUPIOT, (2015) denomina, por meio da liberdade programada ou da autonomia na subordinação.
É claro que neste texto, não se busca contrapor a evolução tecnológica à conquista de direitos e da saúde dos trabalhadores. No entanto, nenhuma ação que vise garantir a conciliação entre saúde, trabalho e direitos consegue avançar sem o equilíbrio entre esses três polos (MASSON et al, 2021). No Brasil e no mundo, contrapondo-se a essa forma de produção, os trabalhadores vêm se unindo pela regulação do trabalho e para garantir pelo menos alguns direitos, subsumidos nos algoritmos da empresa.
A esperança é que o Estado, a Justiça e as organizações sindicais atuem, nos Estados Nacionais, a favor e em defesa dos trabalhadores (LINHART, 2017). De qualquer forma, é importante ressaltar que a uberização materializa e prenuncia o desmantelamento dos movimentos trabalhistas tradicionais, quebrando a segurança nos vínculos fixos e desgastando, sem limites, a saúde e a qualidade de vida dos trabalhadores.
Leia mais
ABÍLIO, L. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Revista Psicoperspectivas [online]. 2019, vol. 18, no. 3, pp. 41-51 [viewed 16 December 2021]. http://dx.doi.org/10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674. Available from: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?pid=S0718-69242019000300041&script=sci_arttext
LINHARD, D. A uberização do trabalho não é inevitável. Um assalariado sem submissão é possível [online]. Le Monde Diplomatique Brasil. 2017 [viewed 16 December 2021]. Available from: https://diplomatique.org.br/um-assalariado-sem-submissao-e-possivel/
MASSON, L.P., et al. Parceiros assimétricos: trabalho e saúde de motoristas por aplicativos no Rio de Janeiro. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2021, vol. 26, no. 12, pp. 5915-5924 [viewed 16 December 2021]. https://doi.org/10.1590/1413-812320212612.14652021. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/54s4B9HLwSqvGMhHRqK3psk/?lang=pt
MELEK, M.I. and BOSKOVIC, A.B. A revolução digital e o infoproletário no Brasil. In: 59º Jornal do Congresso Brasileiro do Trabalho. São Paulo: LTR, 2019 [viewed 16 December 2021]. Available from: http://www.ltr.com.br/congressos/jornal/direito/jornal_direito.pdf
SOUZA, K.E., et al. Desafios contemporâneos da saúde do trabalhador. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2021, vol. 26, no.12, pp. 5866 [viewed 16 December 2021]. https://doi.org/10.1590/1413-812320212612.19042021. Available from: https://www.scielosp.org/article/csc/2021.v26n12/5866-5866/pt/
SUPIOT, A. La gouvernance par les nombres. Paris: Editions Fayard, 2015.
Link(s)
Para ler a edição temática completa, acesse: https://www.scielo.br/j/csc/i/2021.v26n12/
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Para ler o artigo, acesse
MASSON, L.P., et al. “Parceiros” assimétricos: trabalho e saúde de motoristas por aplicativos no Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2021, vol. 26, no. 12, pp. 5915-5924 [viewed 16 December 2021]. https://doi.org/10.1590/1413-812320212612.14652021. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/54s4B9HLwSqvGMhHRqK3psk/?lang=pt
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