Feminicídio, a cara do machismo arcaico

Maria Cecília de Souza Minayo, Editora-chefe da Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Luiza Gualhano, Editora assistente da Revista Ciência & Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Logo do periódico Ciência & Saúde ColetivaCaideco-Roa e Cordeiro, no artigo Análise de casos de feminicídio em Campinas, SP Brasil entre 2018 e 2019 por meio do modelo ecológico da violência, publicado na Ciência & Saúde Coletiva, 28.1.2023, realçam as circunstâncias e os fatos disparadores que constituem a microssociologia desse tipo de crime violento, analisando, de forma qualitativa, casos ocorridos em Campinas (SP), nos anos de 2018 e de 2019.

O método utilizado no estudo foi o de entrevista a membros da família, amigos, vizinhos, testemunhas e agentes de saúde sobre 24 dos casos, utilizando a técnica da autopsia verbal, complementada com informações da mídia e informes de autopsias clínicas. As narrativas foram analisadas seguindo o modelo ecológico proposto pela Organização Mundial da Saúde para estudos de violência, o que leva em conta aspectos individuais, relacionais, comunitários e sociais (DALLBERG, et al, 2006).

No mundo, a cada dia são contabilizadas em média 137 mortes de mulheres por um membro da própria família (UNODC, 2018). A maioria dos casos acontece em espaços domésticos e são de autoria de parceiros íntimos ou parentes de sexo masculino (WHO; OPAS, 2012). No Brasil, em 2019, foram notificados em média 13 homicídios femininos diários (IPEA, 2019).

Durante os últimos cinco anos o país vem registrando aumento desse crime que se tornou mais frequente no contexto da covid-19 (FBSP, 2021). É importante ter em mente que a morte de uma mulher não é um evento isolado. Pela relevância do papel social feminino, sua morte impacta a vida de muitas pessoas ao redor. Por exemplo, na esteira dos 24 casos aqui estudados, houve três mortes de agressores que se suicidaram após cometerem o crime ou morreram durante a agressão e 45 filhos perderam suas genitoras.

O maior risco para o feminicídio ocorre no nível relacional. Mundialmente, 30% das mulheres que estiveram em um relacionamento (conjugal, informal ou de namoro) reportam ter sofrido violência física ou sexual por parte do parceiro íntimo. A maioria analisada neste estudo tinha relacionamento com homem violento (79%). Essa violência se manifestava na exigência de obediência, de submissão e em formas de controle que foram aumentando em severidade, frequência e de forma cíclica, terminando com o feminicídio.

Estudos realizados em 10 países, dentre eles o Brasil, corroboram os dados desse artigo, mostrando que quando uma mulher é morta, os atos violentos que a vitimaram não foram incidentes isolados, 67% delas tinham história de abuso antes do assassinato (Lucena, et al, 2016). Importante alerta é que mulheres vítimas de abuso têm tendência de se envolver em novos relacionamentos violentos, de forma que os antecedentes desse tipo de relacionamento são fator de risco para o feminicídio (CAMPBELL, et al, 2007).

O relacionamento com homens casados, sobretudo se há suspeitas de gravidez é um forte preditor, assim como a separação, pois as agressões e as ameaças persistem. No estudo em pauta, das 24, seis mulheres foram mortas pelos maridos que não aceitaram o final da união doentia. Por isso, muitas mulheres dizem que preferem não abandonar os agressores por medo de sofrer abusos mais severos ou morte, particularmente quando não têm suporte econômico, por preocupação com os filhos, por falta de redes de apoio, e também pelos preconceitos que rondam as mulheres separadas.

O perfil do agressor também foi traçado por Caideco-Roa e Cordeiro (2023): homem valentão e controlador; que consome álcool e outras drogas; que limita o ir e vir e o acesso da mulher às redes sociais; que a proíbe de trabalhar e estudar; que decide sobre sua roupa, maquiagem, comida e bebida; que restringe seu acesso a dinheiro, cartão de crédito, conta bancária e aos bens familiares.

Esses comportamentos foram encontrados nos casos estudados. Um aspecto não incomum são as ameaças de suicídio por parte do homem, caso a mulher o deixe. Muitos agressores explicam suas atitudes pelo ciúme e pela sensação de que estão sendo traídos.

A ideia de traição como justificativa para matar a companheira vem associada à concepção de propriedade sobre seu corpo, ações e sentimentos. Assim, a violência ser vista como instrumento legítimo para limitar a independência feminina e manter o direito masculino à autoridade.

O texto em questão merece ser lido na sua integralidade. Sublinha-se a preocupação dos autores com uma rede de apoio deficiente frente à forte cultura patriarcal. Concepções tradicionalistas sobre o papel feminino, atitudes machistas, descrédito por parte das autoridades na palavra da mulher quando denuncia, tendência à culpabilização da vítima pavimentam o caminho do agressor. Enquanto isso, o sonho das mulheres é viver sem medo numa sociedade com igualdade de direitos!

Referências

CAMPBELL, J., et al. Intimate partner homicide: review and implications of research and policy. Trauma Violence Abuse [online]. 2007, vol.8, no. 3, pp. 246-69 [viewed 8 February 2023]. https://doi.org/10.1177/1524838007303505. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17596343/

DAHLBERG, L.L. and KRUG, E.G. Violência: um problema global de saúde pública. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2006, vol.11, no. 2, pp. 1163-1178 [viewed 8 February 2023]. https://doi.org/10.1590/S1413-81232006000500007. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/jGnr6ZsLtwkhvdkrdfhpcdw/

Fórum Brasileiro de Segurança pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2021 [viewed 8 February 2023]. Available from: https://forumseguranca.org.br/anuario-15/

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da Violência. 2019 [viewed 8 February 2023]. Available from: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/atlas-da-violencia-2019/

LUCENA, K., et al. Analysis of the cycle of domestic violence against women. Journal of Human Growth and Development [online]. 2016, vol. 26, pp. 139-146 [viewed 8 February 2023]. https://doi.org/10.7322/jhgd.119238. Available from: https://www.revistas.usp.br/jhgd/article/view/119238

UNODC United Nations Office on Drugs and Crime. Global Study on Homicide. Gender-related Killing of Women and Girls. 2018 [viewed 8 February 2023]. Available from: https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/GSH2018/GSH18_Gender-related_killing_of_women_and_girls.pdf

WHO World Health Organization, Pan American Health Organization. Understanding and addressing violence against women. 2012 [viewed 8 February 2023]. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/77432

Para ler o artigo, acesse

CAICEDO-ROA, M. and CORDEIRO, R.C. Análise de casos de feminicídio em Campinas, SP, Brasil, entre 2018 e 2019 por meio do modelo ecológico da violência. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2023, vol. 28, no. 1, pp. 23-36 [viewed 8 February 2023]. https://doi.org/10.1590/1413-81232023281.09612022. Available from: https://www.scielo.br/j/csc/a/mRzcdz4kyz4rsFtsf8gQ3RB/

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Como citar este post [ISO 690/2010]:

MINAYO, M.C.S. and GUALHANO, L. Feminicídio, a cara do machismo arcaico [online]. SciELO em Perspectiva | Press Releases, 2023 [viewed ]. Available from: https://pressreleases.scielo.org/blog/2023/02/08/feminicidio-a-cara-do-machismo-arcaico/

 

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