Ética e “campos sensíveis” na pesquisa em saúde

Kris Herik de Oliveira, Doutor em Ciências Sociais e Bolsista Fapesp de Jornalismo Científico (2023/11803-9), Labjor/Unicamp, Campinas/SP, Brasil.

Logo do periódico Saúde e Sociedade.

No Brasil, a avaliação das questões éticas em pesquisas científicas é realizada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão com representação da sociedade civil vinculado ao Ministério da Saúde, a partir das Resoluções n.º 466/2012 e n.º 510/2016. A resolução n.º 466/2012 traz diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas e testes em seres humanos. Incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, referenciais da bioética e visa assegurar os direitos e deveres dos participantes da pesquisa. Já a resolução n.º 510/2016 apresenta normas aplicáveis a pesquisas específicas nos campos das ciências humanas e sociais.

Esta forma de governança é formada pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), instâncias regionais presentes em todo o território brasileiro, e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), instância máxima de avaliação ética em protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos (ver Figura 1). A CONEP e os CEP têm composição multidisciplinar com participação de pesquisadores, estudiosos de bioética, juristas, profissionais de saúde, das ciências sociais, humanas e exatas, bem como de representantes de usuários. Este é conhecido pelos pesquisadores como “Sistema CEP/CONEP”.

Figura 1. Distribuição geográfica dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) no Brasil

Nas últimas décadas, muito se discutiu sobre as especificidades dos diferentes campos do conhecimento em relação à ética em pesquisa. Após demandas de instituições em ciências humanas e sociais, como a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), avanços significativos foram realizados, muitos deles materializados na Resolução n.º 510/2016

Apesar dos avanços, é importante ressaltar que o próprio sistema CEP/CONEP ainda está pautado em um modo de fazer pesquisa que reforça a perspectiva das ciências biomédicas, onde as pesquisas são realizadas em seres humanos. A própria Plataforma Brasil, base nacional e unificada onde são registradas as pesquisas envolvendo seres humanos, por exemplo, reproduz esse modelo.

A discussão sobre ética em pesquisa não se inicia nem se encerra nas resoluções e órgãos reguladores. Na esteira das discussões sobre as necessidades e os modos de regulamentação ética na prática científica, diferentes trabalhos, especialmente antropológicos, contribuíram com um conjunto de novas problematizações. São exemplos as reflexões sobre os usos de termos de consentimento livre e esclarecido, o anonimato e o risco nas pesquisas, alteridade e vulnerabilidade de participantes, as singularidades de cada contexto social e dos próprios sujeitos envolvidos na pesquisa, e assim por diante.

Buscando oferecer novas contribuições para a temática da ética em pesquisa, o periódico Saúde e Sociedade publicou o dossiê Ética e campos sensíveis de pesquisa: afetos, subjetividades e emoções em cena, em sua quarta edição de 2023. A ideia deste dossiê partiu das inquietações das organizadoras, as Profas. Dras. Jaqueline Ferreira (IESC/UFRJ) e Ivia Maksud (IFF/Fiocruz), diante de suas experiências como pesquisadoras em ciências sociais e saúde coletiva, professoras e orientadoras de pesquisas etnográficas, e de suas atuações como integrantes do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) em suas respectivas instituições.

Neste dossiê, somando a um conjunto de outras publicações nas ciências sociais, as organizadoras chamam atenção para os “campos sensíveis” nas atividades de pesquisa, especialmente a etnográfica. Essa, por sua vez, trata-se de uma ideia presente em trabalhos clássicos da antropologia, os quais dizem respeito ao lugar dos afetos, das emoções, das subjetividades, do extraordinário na pesquisa. 

Nesse sentido, o objetivo do dossiê é oferecer contribuições sobre como esses campos se relacionam com os aspectos éticos. Busca atentar, em especial, para o estudo com populações vulneráveis, relações familiares, sexualidade, violência e questões étnico-raciais.

Segundo Ferreira e Maksud (2023, p. 2), o contato direto com interlocutores desafia os sentidos, requer sensibilidade, demanda capacidade de estabelecer empatia e confiança, exigindo posicionamentos entre “o que pode” e “o que não pode” ser inquerido no campo e revelado na escrita etnográfica. Esse lugar do “desconforto emocional”, segundo as organizadoras, encontra pouco diálogo com os comitês de ética em pesquisa, que frequentemente impõem a garantia da recomendação de atendimento psicológico diante dessas situações.

Em suas palavras, a proposta do dossiê “(…) é problematizar temas como as relações de hierarquia e poder no trabalho de campo, a emoção e os sentimentos que aparecem nas relações construídas ao longo da pesquisa, a entrevista como instrumento de reflexão e terapêutica, as diversas possibilidades de análise, a devolutiva dos ‘resultados’ de pesquisa para os participantes da pesquisa, a compreensão plural do significado de ‘risco’ e ‘benefícios’, entre outros” (FERREIRA; MAKSUD, 2023, p. 3). 

Neste caso, destaca-se uma ênfase especial em pesquisas socioantropológicas que abordem as relações relacionadas à saúde e aos processos de adoecimento, englobando estudos realizados no âmbito da saúde coletiva que estejam em sintonia com essas abordagens metodológicas.

Com relação ao conteúdo, o dossiê traz uma versão revisada do artigo seminal de Teresa Caldeira, importante antropológica brasileira e professora da Universidade da Califórnia, Estados Unidos. Intitulado Uma incursão pelo lado ‘não-respeitável’ da pesquisa de campo, o texto foi originalmente apresentado e publicado no início da década de 1980 e não se encontrava disponível on-line, o que reavivou o interesse das organizadoras em divulgá-lo para as novas gerações. Caldeira problematiza a legitimidade das ciências sociais em investigar a vida e a intimidade, sobretudo de pessoas mais pobres, a partir de um diálogo com os regimes de saber-poder saber foucaultianos.

O artigo de Mónica Franch, “Ainda bem que não foi na barriga”: revisitando uma cena etnográfica de violência contra a mulher, oferece reflexões sobre os dilemas éticos da pesquisa antropológica a partir de uma situação de violência contra a mulher vivenciada durante sua etnografia no Programa Saúde da Família em Recife (PE). 

Fotografia de uma planta dente sendo levada pelo vento.

Imagem: Ivan Dostál/Unsplash (editada pelo autor).

Franch analisa os eventos que se sucederam à agressão, pela chave de duas emoções: “medo dos homens” e “impotência”. Essas categorias ajudam a compreender as reações da equipe de saúde e da própria antropóloga. Além de demonstrar a atualidade dessas questões, a autora chama a atenção para a importância de retomar pesquisas passadas visando a construção de novas reflexões sobre pesquisas atuais e futuras.

Em Indignação, impotência e engajamento. Notas sobre desafios à pesquisa antropológica feminista, Elaine Reis Brandão discute o sentimento de impotência e o sofrimento que mobiliza frente ao trabalho de campo, com temas sensíveis que colocam em cena a vida, as emoções e a saúde de mulheres racializadas e socialmente excluídas no Brasil. Brandão compartilha suas reflexões, principalmente derivadas de sua pesquisa sobre a mobilização de mulheres que receberam o dispositivo para esterilização permanente Essure® no Brasil. 

A pesquisadora descreve seu desconforto ao entrar em contato com essas mulheres, a maioria das quais são pobres e negras, e que se percebem como “cobaias” de uma inovação tecnológica, já que o dispositivo foi implantado nelas sem todos os esclarecimentos necessários, principalmente sobre a possibilidade de sua remoção do corpo, se necessário, causando-lhes intenso sofrimento físico e emocional. A partir desse caso, a autora convida a uma reflexão feminista sobre impotência e vozes silenciadas diante das “autoridades” biomédicas, sentimentos esses que ela compartilha com suas interlocutoras.

No artigo Agência e poder na pesquisa: algumas reflexões sobre os termos de consentimento livre e esclarecido, Claudia Barcellos Rezende discute algumas premissas do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), partindo do princípio de que elas não são dadas. Argumenta que o uso de um TCLE deve ser compreendido dentro de uma relação de pesquisa, que é, ao mesmo tempo, uma relação intersubjetiva entre duas ou mais pessoas posicionadas socialmente. As reflexões partem de suas experiências recentes de pesquisa antropológica sobre gestação e parto, avaliando dimensões como risco, autonomia para discutir as dimensões de agência, poder e ética na pesquisa social.

Em Cartografias em confluências: afetividades emergentes do encontro com a loucura em conflito com a lei, Érica Quinaglia argumenta que pesquisas qualitativas, especificamente etnográficas, trazem desafios para o sistema de revisão ética vigente no Brasil. Salienta que essas pesquisas não são realizadas em pessoas, mas sim com pessoas e/ou grupos sociais em uma relação íntima e afetiva. 

Partindo da pesquisa que desenvolve há mais de uma década sobre a loucura em conflito com a lei, problematiza a obtenção do consentimento livre e esclarecido, a manutenção (ou não) do anonimato, a preservação da imagem das/dos participantes, a realização de pagamento pela participação na pesquisa, a devolução dos resultados e a avaliação de riscos e benefícios. Também evidencia as imposições institucionais e as possibilidades de trocas na restituição de dados com juízes, mostrando como todas as etapas de pesquisa são sujeitas a constantes negociações.

Por fim, em Entrando no campo da desinformação: emoções conflitantes e os limites da relativização, Igor Sacramento, Hully Falcão e Ana Carolina Monari analisam o papel das emoções dos pesquisadores e de seus interlocutores na pesquisa de campo sobre desinformação, a partir de uma investigação sobre os usos do Telegram na circulação e apropriação de informações sobre covid-19. 

Refletindo sobre o emocional na construção do conhecimento antropológico e os limites da relativização no contato com grupos considerados “anticiência” por meio da antropologia digital, os autores debatem o lugar das emoções conflitantes e em jogo na relação entre “nós” e os “sujeitos observados” durante a pesquisa. 

Concluem propondo uma mudança conceitual do “negacionismo”, como sistema explicativo da negação de princípios considerados básicos de conhecimentos e evidências científicas, para o “afirmativismo”, que destaca a afirmação de grupos sociais, de seus valores, crenças e cosmovisões.

De acordo com as organizadoras deste dossiê temático, a expectativa é que “as discussões e análises aqui apresentadas contribuam com pesquisadoras(es) no seu fazer etnográfico e na reflexão sobre os afetos, emoções e subjetividades como partes integrantes do conhecimento antropológico, contribuindo para produções científicas éticas e responsáveis para seus interlocutores e sociedade” (FERREIRA; MAKSUD, 2023, p. 4). 

Dessa forma, portanto, os trabalhos presentes neste dossiê contribuem com um conjunto de reflexões que são, ao mesmo tempo, atravessadas e ultrapassam as questões institucionais sobre ética no campo de pesquisas em saúde e para além dele.

Para ler o editorial, acesse

FERREIRA, J. and MAKSUD, I. Ética e campos sensíveis de pesquisa: afetos, subjetividades e emoções em cena. Saúde e Sociedade [online]. 2023, vol. 32, no. 4, e230700pt [viewed 05 April 2024]. https://doi.org/10.1590/S0104-12902023230700pt. Available from: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/mw4tmKfnVmkkksGHVgGR3VR/  

Links externos

Revista Saúde e Sociedade (FSP/USP) – SciELO: https://www.scielo.br/j/sausoc/

Revista Saúde e Sociedade (FSP/USP) – Página institucional: https://www.revistas.usp.br/sausoc

Edição completa (Vol. 32, Suppl. 1): https://www.scielo.br/j/sausoc/i/2023.v32suppl1/

 

Como citar este post [ISO 690/2010]:

OLIVEIRA, K.H. Ética e “campos sensíveis” na pesquisa em saúde [online]. SciELO em Perspectiva | Press Releases, 2024 [viewed ]. Available from: https://pressreleases.scielo.org/blog/2024/04/05/etica-e-campos-sensiveis-na-pesquisa-em-saude/

 

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